Cotas inserem negros nas universidades
Ufes tinha apenas 11 alunos negros há 20 anos e, hoje, conta com quase 2 mil
* Matéria originalmente publicada em 20/11/2020
Após oito anos da promulgação da Lei de Cotas (12.711/2012), lei federal que estabelece reserva de vagas nas universidades públicas federais, a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) conta com 1.975 alunos cotistas ativos autodeclarados pretos.
O número revela um crescimento de estudantes negros no ensino superior, principalmente se comparado aos índices de 20 anos atrás, antes do sistema de cotas, quando eram apenas 11 alunos ingressantes autodeclarados negros.
Atualmente, a Ufes conta com 11.370 alunos cotistas ativos, sendo 1975 autodeclarados negros. De 2000 a 2020 foram 22.758 alunos ingressantes através dos sistemas de cotas, 5.513 formados, 2.975 desistentes e o restante encontra-se em alguma outra situação acadêmica (afastado para intercâmbio, trancamento, entre outros).
As cotas são fruto das leis de ações afirmativas, que são políticas públicas adotadas para amenizar distorções sociais, econômicas e educacionais oriundas de desigualdades históricas, dentre elas a discriminação racial.
Apesar de a maior parte da população brasileira ser negra, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), esse grupo ainda encontra-se fortemente excluído do ensino superior e, por consequência, ocupa postos de trabalho com menor qualificação e com baixos salários.
Surgimento das cotas
O sistema de cotas surgiu inicialmente nos Estados Unidos no ano de 1960, com o intuito de diminuir e amenizar as desigualdades sociais e econômicas entre negros e brancos daquele país.
No Brasil, o sistema de cotas tornou-se conhecido na metade dos anos 2000, primeiramente pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que foi a primeira instituição do país a criar um sistema de cotas em vestibulares para cursos de graduação, por meio de uma lei estadual que estabelecia 50% das vagas do processo seletivo para alunos egressos de escolas públicas cariocas.
Em 2004 foi a vez da Universidade de Brasília (UnB) implantar em seu vestibular uma política de ações afirmativas para negros. Com isso, a UnB foi a primeira instituição no Brasil a utilizar o sistema de cotas raciais.
Lei de Cotas
Em agosto de 2012 foi aprovada a Lei Federal 12.711/2012 que foi regulamentada pelo Decreto 7.824/2012. De acordo com a legislação vigente, 50% de todas as vagas em universidades públicas federais e em institutos federais são reservadas para alunos que cursaram o ensino médio em escolas públicas.
Metade das vagas é disponibilizada para os estudantes com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo, já a outra metade para os com renda familiar superior a 1,5 salário mínimo, desde que tenham cursado os três anos do ensino médio em escolas públicas.
Dentro dessa reserva de 50% devem ser aplicadas as cotas raciais, levando-se em consideração o número de pretos, pardos e indígenas (PPI) conforme o estado em que se localiza a instituição de ensino e seguindo o percentual de distribuição populacional apontado pelo último censo do IBGE. Regiões com maior número de negros devem reservar mais vagas para negros, estados com maior número de indígenas devem oferecer mais espaços para esse grupo, e assim sucessivamente.
Esse é o método utilizado pelas universidades que fazem uso do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Fora desse grupo, cada instituição pode aplicar a regra que quiser, que varia de acordo com seus regimentos e estruturas, mas se assemelham ao destinar uma porcentagem das vagas disponíveis na instituição para candidatos que se autodeclararem como PPI ou apresentarem comprovação de renda abaixo do limite, no caso das cotas sociais.
Ufes
Em 2003, o Movimento Negro Capixaba protocolou na reitoria da Ufes uma proposta de implantação de reserva de 40% de cotas para negros a partir do vestibular de 2004. Nesse ano, foi deliberada a constituição de uma comissão para elaborar uma proposta de implantação de cotas.
A comissão foi composta por professores, alunos, ex-alunos, representantes da sociedade civil, a fim de se elaborar uma proposta de reserva de vagas para negros e indígenas a ser adotada em 2006. Esse processo de discussão resultou na aprovação do sistema de cotas na Ufes, com recorte social, a partir de 2008.
Dessa forma, em 2008, houve a primeira turma de cotistas da Ufes, mas a proposta aprovada foi a de reserva de vagas sociais. Cinco anos depois, em 2013, esse sistema deu lugar a atual política de reserva de vagas, com adoção de recorte étnico-racial para pretos, pardos e indígenas a partir da promulgação da Lei Federal 12.711/2012.
No Espírito Santo, de acordo com o último censo do IBGE, 57,3% da população capixaba se autodeclara preta, parda ou indígena. Isso significa que, do total de vagas destinadas a cotas, 57,3% são reservados para PPI.
Conforme o artigo 7° da Lei de Cotas, no prazo de dez anos, a contar da data de publicação em 2012, será promovida a revisão do programa especial para o acesso às instituições de educação superior. A universidade deverá garantir a reserva de 50% das matrículas por cursos e turnos nas universidades federais a alunos oriundos integralmente do ensino médio público.
Autodeclaração
Nas universidades, a declaração de PPI é feita pelo próprio candidato, que assina um documento fornecido pela instituição e confirma sua identidade étnico-racial se responsabilizando pelas informações fornecidas.
Na Ufes, além da autodeclaração, o concorrente passa também por uma entrevista com uma banca examinadora a fim de comprovar a veracidade da declaração do candidato.
De acordo com a coordenadora da Comissão de Avaliação Étnico-Racial da Ufes, Jacyara Silva de Paiva, a cada semestre a Pró-Reitoria de Graduação (Prograd), por meio de portaria própria, indica uma Comissão de Verificação de Autodeclaração à demanda social de cotas raciais, composta por membros heterogêneos que são lotados na universidade e treinados para observação in loco.
“Os editais estabelecem como critério para validação do termo de autodeclaração de candidatos negros (pretos e pardos), única e exclusivamente o seu fenótipo, como base para análise e validação, excluídas as considerações sobre a ascendência. Entendendo por fenótipo o conjunto de características físicas do indivíduo, predominantemente a cor da pele, a textura do cabelo e os aspectos faciais, que, combinados ou não, permitirão validar ou invalidar a autodeclaração do candidato”, ressaltou a coordenadora.
A universitária Thamires Amon, estudante do curso de Cinema e Audiovisual da Ufes, foi aprovada através das cotas no ano de 2018 ao se declarar parda. Ela conta que o processo de verificação do seu fenótipo foi bem rápido e que o sistema lhe garantiu uma oportunidade de cursar o ensino superior numa universidade pública, diferentemente do seu histórico familiar.
“Fiquei um pouco nervosa porque quando nos inscrevemos para as cotas nos preocupamos com os casos de fraudes. Confesso que me senti um pouco desconfortável e fiquei com receio de, na hora da verificação, não ser vista como uma mulher parda, já que a identificação é feita somente no olho de quem está na comissão. No meu caso, não teve uma banca, foi uma única pessoa que me analisou e foi dando baixa na minha documentação”, explicou a universitária.
Sobre os critérios subjetivos de avaliação a coordenadora ressaltou que, desde a implantação das cotas, a universidade procura aperfeiçoar os editais de seleção, desenvolvendo procedimentos que viabilizem uma análise cada vez mais objetiva, através da atribuição de parâmetros de análise, bem como da formação dos membros da comissão na área da educação das relações étnico-raciais. Contudo, não descartou um determinado grau de subjetividade durante a apreciação.
Entretanto, em outubro deste ano, duas candidatas gêmeas idênticas tiveram avaliações diferentes da Comissão de Verificação de Autodeclaração da Ufes. Uma foi aprovada e a outra teve o pedido indeferido sob a alegação de que não apresentava características fenotípicas de pessoa negra.
“A subjetividade sempre existirá em determinado grau de análise, mas o objetivo é que esta seja cada vez menor a fim de evitar qualquer tipo de insegurança jurídica. O intuito é agir com o zelo necessário para garantir a política de reserva de vagas em beneficio da população negra (composta de pretos e pardos) e indígena, cumprindo os preceitos constitucionais do Estado Democrático de Direito na tentativa de superar as desigualdades sociais e regionais e instaurar mecanismos de denúncias. Desta forma, a análise da comissão de verificação busca contribuir de forma respeitosa para a materialização das políticas afirmativas e o enfrentamento das desigualdades raciais em nossa universidade”, enfatizou a coordenadora.
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