O voto religioso vai definir a eleição?
Duas semanas de segundo turno e, nacionalmente, as discussões eleitorais se resumiram a satanismo, maçonaria, canibalismo, suposta vida dupla de pastores e uma competição para saber quem tem mais apoio entre criminosos.
A pauta religiosa, da moral e de costumes se impôs de tal forma que o Brasil real, que não atingiu a meta da vacinação contra a poliomielite, que tem mais de 30 milhões de seus filhos na pobreza, que registra um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas, está ficando para trás. E pelo andar da carruagem, não deve alcançar a arena de debate até dia 30, data da votação de 2º turno.
Por que ser contra ou a favor do casamento gay gera mais engajamento e reações do que o debate sobre pautas para que crianças pobres não passem fome? Por que a possibilidade de Bolsonaro ter uma aliança com a maçonaria gerou mais indignação entre seus seguidores do que as suspeitas de corrupção no Ministério da Educação? Por que Lula prepara uma carta aos evangélicos?
Segundo o pastor, escritor e cientista da religião Kenner Terra e o professor e doutor em Sociologia João Gualberto, há uma explicação para esse fenômeno: o voto religioso pautou o debate, impactou nas eleições de primeiro turno e deve fazer a diferença no próximo dia 30 também.
“Temos testemunhado, na prática, a estranha e perigosa relação entre política e religião. Políticos que usam metáforas, temas, questões religiosas para convencer seu eleitorado. Esses dias estava escrevendo sobre a batalha espiritual que se estabeleceu no discurso político. Isso atrapalha muito a reflexão política de prestarmos atenção no que é importante”, disse Kenner que, junto com João Gualberto, participaram do programa “De Olho no Poder”, na rádio Jovem Pan News Vitória, na última quinta-feira (13).
Segundo ele, ninguém deixa de ser religioso para atuar na esfera pública, mas há peças certas a serem usadas. “O estado não pode pensar ações a partir de uma prática religiosa. A moral religiosa não pode determinar a ação do estado. Por quê? Porque o estado é laico. O protestantismo militou por muitos anos e até hoje milita na separação entre igreja e estado”, afirmou.
Kenner disse que nunca viu acontecer, na história da igreja brasileira, o que tem visto nessa eleição: racha entre os fiéis, convenções fazendo documento para punir quem apoia políticos de esquerda, lideranças expulsando diáconos da igreja pelo posicionamento político.
“Em nenhum outro momento na história política brasileira nós testemunhamos esse tipo de atitude em espaços da igreja. Não tivemos isso em outras eleições. Em nenhum momento da história a igreja viveu essa tensão que produz uma série de rupturas, rachas, brigas, violência, assédio, problemas emocionais. As igrejas se tornaram, em alguns lugares, espaços de batalhas e de desumanização, por conta de uma postura violenta, desrespeitosa e antiética. E isso é muito novo pra gente”, afirmou.
João Gualberto faz coro, mas diz que o envolvimento entre política e religião sempre esteve presente, começando com o catolicismo, que era a religião oficial. Recentemente ele concluiu uma pesquisa sobre quem são os evangélicos no Estado, quais são seus princípios, valores, o que querem e o que esperam do governo. “A identidade evangélica precede ao ato do voto. Há um desejo de que a moral evangélica, a arquitetura cristã do estado estejam presentes na arena política”, afirmou.
Pobre de direita?
O voto por identificação religiosa explicaria porque embora os mais pobres tendem a votar em políticos de esquerda, optando assim pelo voto econômico, isso não se aplicaria aos mais pobres evangélicos. “Numericamente, os evangélicos cresceram muito e o evangélico entra na urna para votar como evangélico. O católico vota com outras classificações sociais, mas o evangélico tem princípios superiores ao recorte econômico”.
Kenner contou a história de uma empregada doméstica que, embora sua família tenha sido beneficiada por programas sociais de governos da esquerda, ela votaria contra políticos dessa vertente por entender que estaria “defendendo os valores da família”.
“Ela disse que preferia passar por necessidades financeiras do que ter a família atacada”, disse Kenner, explicando que ela se referia a supostos ataques de ideologias contrárias à família tradicional, como a agenda LGBT. “Então, o voto evangélico não passa simplesmente pela situação econômica, a questão religiosa é fundamental para a compreensão da realidade”, enfatizou.
Voto de cajado funciona?
Durante a campanha eleitoral, é comum ver a romaria de políticos em missas e cultos atrás do voto religioso e do apoio público da liderança. É comum também ver algumas denominações apadrinhando candidatos e pedindo, dos púlpitos, voto em seus escolhidos – embora seja crime eleitoral. Mas, segundo João Gualberto, a transferência de votos dos líderes religiosos não é automática.
“O voto de cajado existe, mas está em declínio. Não adianta fazer acordo com o pastor e não ter um comportamento compatível com aquilo que espera o fiel”, disse o professor. Para Kenner, porém, a figura do sacerdote ainda representa um capital simbólico importante que não pode ser desprezado.
Brasil é conservador?
Outro ponto analisado pelos dois especialistas durante o programa de rádio foi sobre a onda conservadora que tomou conta da política e das igrejas evangélicas. Se ela veio para ficar ou se é cíclica, como outros movimentos que já ocorreram. “Há um Brasil profundo conservador, que não tem relação com classe. E esse Brasil, a cada ano que passa, se torna mais evangélico”, disse Kenner.
Esquerda perdeu o bonde?
Eles também foram questionados se a esquerda perdeu voz entre os evangélicos e se a tentativa de aproximação de Lula, por meio de carta de compromisso ou interlocutores, vai dar resultado. “A esquerda se desconectou do povo, não consegue se comunicar com o evangélico. A esquerda se desconectou da realidade do Brasil porque se sofisticou demais, alcançou uma bolha intelectual e acadêmica, que fez com que dialogasse com uma elite intelectual branca e o povo, que é o substrato dessa reflexão, não o conhecesse mais”, disse Kenner.
Para João Gualberto, a crítica não deve ser destinada só aos partidos de esquerda mas também para outras camadas da sociedade. “As pessoas insistem na história do ‘gado’. Elas não estão entendendo a gênese disso, o enraizamento disso. As classes que pensam que estão pensando o Brasil, não estão entendendo o que está se passando no Brasil”.
Na íntegra
Kenner e João Gualberto também traçaram uma linha do tempo sobre a entrada dos evangélicos na política, sobre a ascensão do neopentecostalismo, dos pastores midiáticos, dos números da última pesquisa Datafolha – que mostram que 62% dos evangélicos apoiam Bolsonaro – e dos vários tipos de fiéis, como os evangélicos progressistas e os que se afastam de uma identidade política. Falam ainda sobre as perspectivas pós-eleição para o país.
Fonte: Folha Vitória
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