STF, plataformas e a nova era da censura “legalizada” na internet brasileira

Por Renato Canuto
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), por 9 votos a 3, alterou profundamente as bases da responsabilidade civil das plataformas digitais no Brasil.
Ao declarar a inconstitucionalidade parcial do artigo 19 do Marco Civil da Internet (que previa imunidade das redes sociais diante de conteúdos de terceiros, salvo descumprimento de ordem judicial) o STF introduziu um novo paradigma jurídico, plataformas agora têm o dever de agir de forma proativa contra conteúdos “manifestamente ilícitos”. Caso contrário, poderão ser responsabilizadas.
Tal mudança atende, sem dúvida, à pressão crescente por combate à desinformação, ao discurso de ódio e aos crimes digitais. Mas traz consigo um efeito colateral silencioso e preocupante, a legalização da censura privada, sem garantia de contraditório, devido processo legal ou transparência.
A essência da decisão do STF está na ideia de que as plataformas não podem ser meras espectadoras, elas devem agir quando se depararem com conteúdos “claramente ilegais”.
O problema é: Quem define o que é “claramente ilegal”? Em que momento um conteúdo de forte crítica política, religiosa, moral ou artística passa a ser considerado “ilícito”?
Ao transferir o dever de decidir e filtrar o que é aceitável diretamente às plataformas privadas, o STF institucionaliza uma forma de censura prévia delegada.
Essa decisão será tomada por empresas, com sede fora do Brasil, sem transparência, sem contraditório e com critérios próprios e secretos. O resultado prático, poderá, facilmente, cair em remoções arbitrárias, intimidação do debate público e auto-silenciamento.
Por certo, as empresas naturalmente buscam mitigar riscos e, a partir do momento em que a omissão pode gerar indenizações, financeiras e reputacionais, a tendência é adotar políticas de moderação cada vez mais rígidas, mesmo em situações limítrofes, para evitar qualquer chance de responsabilização.
Na prática, isso significa que conteúdos legítimos, mas polêmicos ou impopulares, serão removidos como “medida preventiva”. Assim, sob o pretexto de “responsabilidade digital”, o Brasil corre o risco de se tornar um território de tutela algorítmica do discurso público, onde a liberdade de expressão depende de filtros invisíveis, opacos e inquestionáveis.
Além disso, a decisão do STF não impôs contrapesos claros às plataformas. Não há exigência formal de garantia de notificação prévia antes da remoção, direito ao contraditório, procedimentos de recurso claros e acessíveis, revisão humana qualificada dos casos ambíguo e prestação de contas pública sobre critérios de moderação.
Ou seja, o STF deu o dever de agir, mas não definiu os limites nem as garantias mínimas para os usuários. E esse vácuo será, quase inevitavelmente, preenchido por políticas privadas, não por regras democráticas.
Outro efeito preocupante é o impacto político. Em um ambiente já polarizado, a decisão amplia o poder de redes sociais sobre o alcance, visibilidade e permanência de determinados discursos. E ao serem pressionadas judicialmente, essas plataformas tenderão a remover conteúdos mais sensíveis ou controversos, ainda que não sejam ilícitos.
Este precedente pode servir como instrumento indireto de contenção de opositores, jornalistas, influenciadores e movimentos sociais. Tudo isso sem a intermediação de um juiz, e sem as garantias do Estado de Direito.
É evidente que o ambiente digital exige alguma forma de regulação. Mas uma regulação eficaz não se faz apenas com imposição de deveres às empresas. É preciso proteger também o cidadão, inclusive contra os abusos dessas próprias empresas.
De fato, a decisão do STF, ao retirar a exigência da ordem judicial, quebra uma das poucas proteções processuais existentes no ecossistema digital brasileiro. Ela parte da premissa de que as plataformas agirão com responsabilidade e equilíbrio. Mas essa é uma aposta de alto risco, especialmente em tempos de desinformação, vigilância de dados e uso político da moderação.
A grande questão, portanto, é quem vigia os vigilantes? Ao decidir que plataformas devem agir para remover conteúdos “manifestamente ilícitos”, o STF quis proteger a sociedade de abusos digitais, mas ao fazê-lo, empoderou empresas privadas com um novo papel, o de guardiãs da legalidade do discurso, sem supervisão judicial, sem transparência e sem garantias reais ao cidadão.
Em nome da segurança, o Brasil pode estar abrindo as portas para uma censura “legalizada” e silenciosa, que corrói aos poucos o espaço democrático e o pluralismo da internet.
Cabe agora à sociedade civil, aos juristas e ao Congresso Nacional corrigir esse desequilíbrio, criando regras claras, transparentes e com garantias processuais, para que a regulação da internet não sacrifique, justamente, aquilo que deveria proteger: A Liberdade.

Advogado atuante na área Empresarial, Administrativo e Licitações. Habilitado em Liderança, Inteligência Interpessoal, Comunicação Eficaz e Negociação, com 26 anos de experiência na Administração Pública.