Carrinho Vazio, Constituição Ignorada: Quando o Direito ao Mínimo Existencial Vira Luxo

Ao advogado, não basta observar o cenário — é preciso interpretá-lo à luz da lei. E a realidade econômica atual do brasileiro, expressa no peso da sacola de supermercado e na leveza do contracheque, levanta uma pergunta jurídica de fundo: estamos respeitando o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana?
A resposta, infelizmente, é negativa. A cada visita ao mercado, o cidadão comum enfrenta mais do que a alta de preços — enfrenta uma violação silenciosa de seus direitos sociais.
O artigo 6º da Constituição Federal estabelece que são direitos sociais: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, e assistência aos desamparados. Esse conjunto forma o chamado mínimo existencial, conceito jurídico que garante ao cidadão condições básicas para uma vida digna. O problema é que, na prática, esse mínimo se torna inalcançável quando o salário não acompanha a escalada inflacionária, especialmente nos itens essenciais. E como operador do direito, é impossível ignorar que a dignidade humana — pilar de nosso ordenamento — está sendo corroída nas prateleiras.
No Espírito Santo, dados do Dieese mostram que a cesta básica em Vitória fechou o mês de março de 2024 custando R$ 726,32. Esse valor compromete mais de 57% do salário mínimo líquido, o que significa que, para muitas famílias capixabas, o básico deixou de ser acessível.
Quando se soma a isso o custo com transporte, energia, aluguel e medicamentos, o chamado “mínimo existencial” se transforma, juridicamente, em uma promessa constitucional sistematicamente descumprida.
Nosso sistema tributário contribui fortemente para esse cenário. Ele é regressivo: incide de forma pesada sobre o consumo e de forma mais branda sobre renda e patrimônio. Isso significa que o cidadão que ganha um salário mínimo paga os mesmos tributos sobre produtos essenciais, como arroz, feijão e gás de cozinha, que aquele que tem renda elevada. A consequência é direta: quem tem menos, paga mais — proporcionalmente — e sente mais. A esperada reforma tributária pode ser uma ferramenta importante de justiça social, mas para isso precisa priorizar a redução da carga sobre bens essenciais e ampliar a tributação sobre grandes rendas e patrimônios. Sem isso, continuará a perpetuar desigualdades, inclusive entre os próprios estados da federação.
No Espírito Santo, a tributação sobre energia elétrica, combustíveis e outros insumos básicos tem impacto direto no custo de vida e no orçamento das famílias. O acompanhamento dessas decisões pelo cidadão é possível, por meio dos portais de transparência fiscal, das leis orçamentárias estaduais e dos conselhos participativos. Compreender como esses tributos são arrecadados e aplicados é uma forma eficaz de participação democrática e controle social.
Outro ponto relevante é a desconexão entre os reajustes salariais e o custo real da vida. O ordenamento jurídico estabelece que o salário deve preservar seu poder de compra, mas ao confrontarmos os índices oficiais com os preços da cesta básica, dos remédios e do transporte público, especialmente nas regiões metropolitanas do Espírito Santo, encontramos uma desconformidade evidente. Essa perda de poder aquisitivo representa uma lesão concreta aos direitos trabalhistas e sociais — uma lesão que, embora silenciosa, merece resposta jurídica e institucional.
Cabe à advocacia não apenas atuar nas lides judiciais, mas também contribuir para a formação da consciência social e jurídica do cidadão. O advogado, como intérprete do direito e partícipe da ordem democrática, deve alertar para os efeitos da política fiscal e orçamentária sobre os direitos fundamentais. No caso capixaba, isso inclui acompanhar a arrecadação tributária, a destinação do orçamento público, e garantir que os recursos efetivamente retornem em forma de serviços públicos essenciais e acessíveis.
O carrinho está mais leve, mas a Constituição, mais distante. Assim, podemos afirmar: não há dignidade sem condições mínimas de subsistência. Defender o poder de compra do cidadão é, antes de tudo, defender os fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito.

Advogado atuante na área Empresarial, Administrativo e Licitações. Habilitado em Liderança, Inteligência Interpessoal, Comunicação Eficaz e Negociação, com 26 anos de experiência na Administração Pública.