Como eleição divide a Igreja Católica: de padre pró-armas a cardeal ambientalista
Os gritos que ecoaram dentro de uma igreja católica e interromperam uma missa em Jacareí (SP) no domingo (16/10) não revelaram apenas sua discordância com o sermão do padre Everton Machado. “O senhor não vai falar de Marielle Franco dentro da casa de Deus. Uma esquerdista do PSOL, uma homossexual, que quer a ideologia de gênero dentro da escola das crianças”, disse.
A interrupção da missa aos gritos pela mera citação ao nome de Marielle Franco, um ícone da esquerda, assassinada no Rio de Janeiro em 2018, colocaram à mostra como a Igreja Católica está sendo afetada pela disputa acirrada pelo voto dos seus fiéis na reta final do segundo turno.
“O abuso da religião para fins eleitorais nestas eleições deixou exposta uma fratura na Igreja Católica”, disse a antropóloga e coordenadora acadêmica do Instituto de Estudos da Religião (ISER), Regina Novaes.
E em meio a essa disputa, a diferença de posicionamento entre religiosos explicita ainda mais essa “fratura”. De um lado, padres como Edivaldo Betioli defendem abertamente o voto em Jair Bolsonaro e pautas como o uso de armas para legítima defesa. Do outro, o cardeal da Amazônia e arcebispo de Manaus, Dom Leonardo Steiner, conhecido por suas posições em prol do meio ambiente e por críticas ao presidente Bolsonaro, ataca a transformação da religião em “ideologia”.
Corrida eleitoral acirrada
A disputa pelo voto católico se acirrou nas últimas semanas.. No primeiro turno, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) obteve 48,43% dos votos contra 43,20% do presidente Jair Bolsonaro (PL).
Na sua tentativa de tirar uma diferença de 6,1 milhões de votos, Bolsonaro vem intensificando suas participações em eventos católicos enquanto Lula tenta manter a vantagem.
A estratégia de Bolsonaro tem como base a noção de que a maioria do eleitorado católico declara voto em Lula e não no presidente e a constatação de que o volume de eleitores católicos é maior que o evangélico, onde Bolsonaro já aparenta ter uma vantagem consolidada.
Segundo pesquisa do Instituto Datafolha de 2020, 50% dos brasileiros se autodeclaram católicos, contra 31% que afirmam ser evangélicos.
Segundo a pesquisa de intenção de voto mais recente do Ipec (ex-Ibope), 56% dos entrevistados afirmam que votariam em Lula, enquanto apenas 38% apoiam Bolsonaro. O cenário se inverte no segmento evangélico.
De acordo com a mesma pesquisa, 60% afirmam que votariam em Bolsonaro contra 32% de Lula.
Ao longo desse esforço pelo voto católico, Bolsonaro participou, recentemente, da procissão em homenagem à Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, e à Nossa Senhora de Aparecida (padroeira do Brasil), em Aparecida do Norte (SP).
A passagem de Bolsonaro pela cidade paulista, no entanto, chamou atenção pelo tumulto causado por apoiadores do presidente que hostilizaram uma equipe de reportagem de uma TV local e uma pessoa que usava uma camisa vermelha. Apoiadores do presidente também vaiaram o arcebispo de Aparecida, Dom Orlando Brandes, que disse, na sua homilia, que o Brasil precisava vencer os “dragões” do ódio e da violência.
A fissura
A antropóloga Regina Novaes avalia que episódios como a interrupção de missas em São Paulo e no Paraná são reflexo de um processo que ela classificou como “religiogização (sic) da política”.
“Isso acontece quando as identidades religiosas são acionadas e se sobrepõem ao debate político. É como se a identidade religiosa passasse a ser mais importante que as questões meramente políticas”, disse a antropóloga.
Novaes explica que, historicamente, a Igreja Católica, tanto no clero quanto entre os seus fiéis, sempre foi dividida.
“Sempre houve divisões dentro do catolicismo. Nos anos 1970, líderes religiosos mais progressistas tiveram mais espaço. Depois, houve uma reação mais conservadora nos anos 1980 e 1990. Agora, há um momento mais progressista por conta do papado de Francisco, mas as divisões continuam existindo. E elas também são vistas entre os fiéis”, explicou a antropóloga.
Regina Novaes disse, no entanto, que a “religiogização da política” fez com que essas divergências deixassem de ser tratadas nos “corredores” e passaram a ser vistas na “sala de estar” do catolicismo, em uma alusão às missas.
“No catolicismo, o padre é alguém que exerce certa hierarquia sobre os fiéis. Quando você vê um fiel interrompendo uma missa e desafiando o padre, é porque há uma ruptura muito grande do laço que havia antes. E essa ruptura só ocorreu por conta do processo político”, afirmou a antropóloga.
Essa “ruptura” mencionada por Regina Novaes pode ser exemplificada na diferença com a qual dois religiosos se manifestam sobre o atual momento político do Brasil.
Oficialmente, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – principal representação da Igreja Católica no país – manteve a neutralidade e não declarou voto em nenhum candidato, mas isso não vem impedindo que padres de diferentes correntes ideológicas se posicionem sobre as eleições.
Armas x meio ambiente
De um lado estão padres como Edivaldo Betioli, que defende o acesso a armas de fogo para a legítima defesa e diz que o Brasil viveria uma suposta ameaça comunista. Ele declara seu voto a Jair Bolsonaro.
Do outro há padres como Frei David Santos e Júlio Lancelotti, que já declararam seus votos em Lula. Há também sacerdotes com o cardeal Dom Leonardo Steiner, que não declara seu voto, mas faz críticas a Bolsonaro, ainda que sem mencionar o seu nome diretamente.
Betioli ficou conhecido em 2018 quando foi fotografado com um revólver e por defender o acesso a armas de fogo nos casos de legítima defesa. Por conta disso, ele passou a ser associado ao presidente Jair Bolsonaro, que apoia abertamente a pauta armamentista.
O padre mantém um canal no YouTube em que grava novenas e orações. Em agosto deste ano, ele liderou uma novena virtual cujo fim culminaria no Dia da Independência em que pedia a intercessão de Nossa Senhora de Nazaré contra o “comunismo”, o “ateísmo” o “laicismo”, corrente que sustenta a ideia de estado laico presente na Constituição Federal de 1988.
“Livrai-nos, mãe de Deus e nossa, do flagelo do comunismo”, diz um trecho da oração.
À BBC News Brasil, Betioli disse que rechaça o rótulo de “pró-Bolsonaro”, mas admite que apoia a reeleição do presidente para evitar o retorno do PT ao poder.
“O atual presidente não é o candidato perfeito, e está longe da perfeição, mas ainda assim é a única alternativa contra o projeto de poder petista, que é mau e destruidor. O Partido dos Trabalhadores é publica e notoriamente favorável ao assassinato de bebês no ventre materno e seu líder defende o aborto como questão de saúde pública”, disse o padre.
A descriminalização do aborto não aparece nas diretrizes do programa de governo que o PT divulgou na internet. Em abril, Lula disse, durante o evento, que o aborto deveria ser tratado como uma questão de saúde pública. Na terça-feira (18/10), em entrevista ao podcast Flow, ele disse ser contra o aborto e que a questão deveria ser decidida pela “lei”.
Outro ponto no qual Betioli ecoa as pautas de Bolsonaro é com relação à pauta armamentista e o suposto risco de uma ameaça comunista ao Brasil.
Ele diz não defender medidas que facilitem o acesso a armas, mas sustentou que defende o direito ao uso de armas para a legítima defesa e diz não acreditar que a maior circulação de armas possa trazer perigo.
“Sobre os dez mandamentos: o não matar diz respeito ao homicídio voluntário. A legítima defesa não se configura como um. Não temo que mais armas gerem mais violência”, disse.
Questionado sobre o comunismo, ele diz acreditar que o país vive sob ameaça de implantação do regime.
“Em relação ao Brasil, basta lermos todos os documentos do Partido dos Trabalhadores, desde sua fundação, cadernos de teses, resoluções, atas de congressos, bem como declarações do seu candidato e suas relações de amizade e inspiração com líderes socialistas para percebermos para onde querem levar o país. O comunismo é um perigo real”, disse o padre.
Dom Leonardo Steiner, por sua vez, vai na contramão do que disse Betioli. Empossado cardeal pelo Papa Francisco, o sacerdote critica a pauta armamentista defendida por Bolsonaro, rechaça a ideia de que o país vive sob uma ameaça comunista e ataca o uso da religião como instrumento político.
“Não sei de que comunismo estão falando. Eu tenho 72 anos e não acho que nós tenhamos corrido esse risco nem mesmo em 1964 (ano do golpe militar) […] quando se coloca uma questão ideológica como essa é quase impossível discutir determinadas acusações”, disse Steiner à BBC News Brasil.
Ao criticar a pauta armamentista, Dom Leonardo Steiner cita o exemplo de São Francisco de Assis, que teria pedido a seus seguidores que andassem desarmados.
“Não é em armas que criamos novas relações. A agressão só cresce. Achamos que estamos protegidos, mas não estamos protegidos. Veja nos Estados Unidos a quantidade de morte causada por armas legalmente adquiridas […] vivemos uma realidade em que a fraternidade está ficando esquecida”, disse o sacerdote.
Conhecido por sua defesa do meio ambiente, o cardeal criticou a política ambiental do governo Bolsonaro em entrevista publicada nesta semana ao jornal O Globo.
“A depredação da Amazônia preocupa. O governo não tem feito muito coisa, eu diria que até tem incentivado, por meio das palavras, o descuido em relação à Amazônia”, disse.
Abuso da fé
A intensificação da corrida pelos votos católicos fez com que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) emitisse uma nota oficial na véspera do feriado de Nossa Senhora Aparecida condenando o que classificou como “exploração da fé como caminho para angariar votos no segundo turno”.
“A manipulação religiosa sempre desvirtua os valores do Evangelho e tira o foco os reais problemas que necessitam ser debatidos e enfrentados em nosso Brasil”, diz um trecho da not
Para Regina Novaes, o padrão de abuso da fé conduzido por Bolsonaro fez com que Lula também aderisse à prática.
“Hoje, a gente vê um abuso do uso da religião para fins políticos dos dois lados. Mas não podemos deixar de mencionar que Lula faz esse movimento como uma reação ao padrão adotado por Bolsonaro”, disse a antropóloga.
Para Regina Novaes, a Igreja Católica não está preparada para lidar com esse fenômeno.
“A Igreja Católica é marcada pela hierarquia. Ela não está equipada para lidar com a contestação direta pelos fieis ou mesmo entre o clero causada por motivos políticos. A lógica que a gente via nas denominações evangélicas foi transferida para o meio católico”, disse.
Dom Leonardo Steiner, por sua vez, diz acreditar que os danos causados pelas eleições deste ano não irão prejudicar a Igreja.
“A Igreja Católica é uma instituição milenar. Já atravessamos coisas muito mais complicadas que isso. Acredito que depois das eleições, a situação vai se normalizar”, disse.
Fonte: G1
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