Entre fronteiras e garantias: o caso Tagliaferro e os limites do poder

Entre fronteiras e garantias: o caso Tagliaferro e os limites do poder

Por Renato Canuto

O pedido de prisão de um ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal rejeitado pela Justiça italiana reacende o debate sobre os limites do poder estatal e a proteção das garantias individuais.

O episódio envolvendo Eduardo Tagliaferro, ex-assessor do ministro Alexandre de Moraes, é mais do que um fato policial, é um caso que expõe, em escala internacional, os freios e contrapesos que distinguem o exercício legítimo do poder de sua possível distorção.

Segundo noticiado, o ministro Alexandre de Moraes expediu pedido de prisão preventiva contra Tagliaferro, acusado de crimes como violação de sigilo funcional e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. A medida foi encaminhada às autoridades italianas, já que o ex-assessor se encontrava naquele país. A resposta veio rápida e inequívoca, rejeitou-se a prisão, entendendo que ela seria desproporcional e que as circunstâncias não justificavam medida tão gravosa.

O tribunal europeu, contudo, impôs restrições de natureza cautelar, como proibição de deixar a cidade onde reside e monitoramento de endereço, reconhecendo que o caso merece atenção, mas sem admitir a privação da liberdade.

É um gesto de prudência jurídica que, no contexto, transcende o processo em si, afirmando que a prisão não pode ser instrumento automático de poder, e que a liberdade é sempre o ponto de partida, não a exceção.

O caso levanta questionamentos que vão muito além de Tagliaferro. Ele põe à prova o próprio conceito de soberania judicial. O Brasil, por meio de um ministro do Supremo Tribunal Federal, formula um pedido com base em sua jurisdição nacional. A Itália, invocando princípios de proporcionalidade e garantias fundamentais, decide não acatar integralmente o pedido. O resultado é um raro exemplo de limitação concreta ao poder punitivo estatal e um lembrete de que, no campo jurídico, autoridade e razão não são sinônimos.

Como advogado, observo com atenção o impacto que situações como essa causam na percepção internacional sobre a justiça brasileira.

O Direito Penal, sobretudo quando envolve figuras públicas, deve operar sob a égide da prudência.

Pedidos de prisão devem estar amparados por elementos objetivos, risco de fuga comprovado e estrita necessidade processual. Quando esses critérios se diluem em meio à pressão política ou midiática, o instituto da prisão preventiva perde sua legitimidade e se aproxima perigosamente do arbítrio.

Há, ainda, um ponto relevante sobre o discurso político que costuma cercar casos assim. Quando um investigado alega perseguição, como fez Tagliaferro diante do juiz italiano, a reação imediata é de descrédito. Mas, independentemente da veracidade da alegação, é papel das instituições zelar para que nenhuma decisão judicial, por mais fundamentada que pareça, transpareça motivação política. O que legitima o Poder Judiciário é a aparência de imparcialidade, tanto quanto o mérito das decisões.

A negativa italiana à prisão não deve ser lida como afronta ao Brasil, mas como reafirmação de valores universais do Estado de Direito.

A liberdade é a regra. A prisão, a exceção. E o poder de decretá-la, ainda que em nome da Justiça, deve ser contido por critérios que transcendam fronteiras.

Em tempos de tensão institucional, episódios como este nos recordam que o Direito não é mero instrumento do poder, é seu limite. E é justamente por existir esse limite que continuamos a poder chamar o exercício do poder de Justiça.