Entrevista com Marciane Pereira dos Santos: “Seria bom eles darem apoio de verdade para nós mulheres. Nós não temos apoio. Se você olhar a Lei, os presos têm mais condições e benefícios do que nós vítimas”

O Consórcio de Notícias do Espírito Santo (CNES), por meio dos portais do grupo Política Capixaba entrevistou, ao longo de todo este mês de março, mulheres que se destacam em seus campos de atuação no Estado.

Cada uma delas contribui para reforçar a importância dos avanços sociais adquiridos nos últimos séculos pelas mulheres e o quanto elas estão lutando para ampliar ainda mais seus espaços na vida pública.

Neste mês, o Governo do Espírito Santo conseguiu aprovar, junto à Assembleia Legislativa, a criação de uma Secretaria Estadual direcionada para as mulheres.

Trata-se de mais uma conquista relevante, já que segundo a Divisão Especializada de Atendimento à Mulher (DIV-DEAM) da Polícia Civil, o Estado encerrou 2022 registrando 39 casos de feminicídio e mais de 17 mil boletins de ocorrência relacionados à Lei Maria da Penha.

Os crimes de injúria, de ameaça e o de lesão corporal estão entre os mais notificados.

Nesse período, 2.573 autores de violência contra a mulher foram presos.

Neste mês de março, a população carcerária do Espírito Santo, em suas 36 unidades prisionais, é de 22.558 internos (a capacidade é de 13.963).

Segundo a Secretaria de Estado da Justiça (Sejus), desse universo carcerário, o total de presos pelos crimes previstos na Lei Maria da Penha era de 159, sendo 70 condenados e 89 presos provisoriamente.

Além desse total, há 90 presos acusados de feminicídio, entre provisórios e condenados.

Tendo esses números como referência, a série de entrevistas especiais do Mês da Mulher será concluída com a universitária e palestrante dos Direitos da Mulher, Marciane Pereira dos Santos.

Ela sobreviveu a um ataque do ex-companheiro, inconformado com término da relação, em 2018 e teve 40% do corpo queimado, além de perder a perna esquerda e os dedos da mão direita.

André Luís dos Santos se entregou quatro dias depois do crime. Ele foi condenado a 32 anos de prisão, em 2022, por tentativa de homicídio por motivo torpe e feminicídio.

Ele morreu em decorrência de problemas de saúde, no último dia 26, depois de cumprir quatro anos e sete meses da sentença.

Marciane passou pelos estágios clássicos da violência derivada da cultura do machismo, sobrevivendo à tentativa de feminicídio.

Mesmo com sequelas e limitações, ela se tornou um exemplo da luta de mulheres comuns, donas de casa,  mães de família e jovens de bairros periféricos, que suportam, sem apoio incisivo do poder público, a violência do cotidiano.

Confira a décima entrevista especial, que encerra o Mês da Mulher destacando o quanto uma mulher poder ser forte, sobretudo, quando a única opção que resta é justamente a de ser forte:

Como tem feito para superar as limitações provocadas pelo crime cometido contra a senhora?

Eu tenho feito muitas coisas. Eu tenho me reinventado todos os dias. Quando eu penso que não vou conseguir, eu mesma acabo me surpreendendo. Dizer que é fácil? Não, não é! Porque devido a essa violência eu tive de reviver, me reinventar e me refazer de novo.

Todos os dias eu tenho me superado. Porque hoje, eu evoluí bastante. Eu já consigo varrer uma casa, consigo lavar as vasilhas maiores, consigo colocar as roupas na máquina, consigo estender, consigo varrer o quintal, colocar uma roupa no meu corpo.

Essa violência fez com que eu me reinventasse. Me fez aprender tudo o que eu sempre soube fazer, porém com as minhas limitações. Todos os dias eu tenho feito algo para mim mesma, para mostrar para mim mesma que posso, que eu consigo melhorar a cada dia mais. É fácil? Não é fácil, mas também não vai ter de ser tão difícil.

Hoje eu consigo cuidar dos meus filhos. Hoje eu consigo pentear os cabelos, escovar os dentes, fazer minha comida. Essa violência me proporcionou desafios e, graças a Deus, eu tenho conseguido superar cada um deles.

Por quanto tempo você conviveu com a violência, antes da tentativa de feminicídio? Por que é tão difícil se desvincular de um agressor?

Entre idas e vindas, convivi com o André Luís por seis anos. Durante dois anos, nós namoramos sério. No começo foi tudo lindo. Foi muito bonito, tanto que no começo, ele me deu uma carta que dizia: “Amar todo mundo ama. O que eu quero é te fazer feliz”. E meu deu um serenata de amor.

Quem não se apaixonaria? Ele era cadeirante, mas não me importei com a impossibilidade dele, simplesmente caí de cabeça. Nesse ato eu que o pedi em namoro. Fui até a casa da mãe dele para conversar. Tanto a mãe quanto a irmã disseram que ele não prestava. Só que até então, eu não sabia o significado do não prestar.

E eu, na minha cabeça, por ser a primeira namoradinha dele, achei que poderia mudá-lo. Levei para igreja. Fizemos campanha. Hoje eu aprendi que a pessoa só muda se ela quiser. Não adianta! Pode vir o melhor especialista, o melhor padre, o melhor pastor. Só muda se ela quiser. Eu fui prova disso, de conviver com alguém assim e digo: Ele só muda se ele quiser.

Quando a mãe e a irmã dele disseram que ele não prestava, não imaginei que era no sentido dele ser violento, de bater.  Cheguei a presenciar cena dele agredindo a mãe verbalmente, xingando a irmã dele. Nesses dois anos que a gente namorou, foi tudo ok. Depois que eu terminei com ele, nas idas e vinda, o ciúme dele aumentou e ele passou a me xingar.

Nossas brigas eram justamente isso, limitadas aos palavrões, sem nenhuma agressão física. Se eu fosse ao mercado e o rapaz do mercado fosse entregar a compra, ele falava que o rapaz era meu amante.

Se eu precisasse pedir um uber, um taxi, ele falava que o motorista era meu amante. Qualquer homem que aparecesse, ele falava que era meu amante.

Um dia, ele me injuriou tanto que chegou a dizer, quando eu estava com minha filha no médico, que eu a estava levando para um motel, para oferecê-la para outros homens. Foi onde a gente brigou mais. Mas nunca batemos um no outro. Foram sempre “simplesmente” palavrões. Antes dessa violência, eram só palavrões.

O último momento foi o ciúme, por ele não aceitar o término do relacionamento. Ele viu que eu estava com outra pessoa. Chegaram para ele e contaram e dali, ele não aceitou.

“Não é minha, não vai ser de ninguém”. Foi onde ele cometeu a violência. Até então nossa briga era só discussão. Quando acabava, ele voltava, dizia estar arrependido, me chamava de meu amor. “Eu estava nervoso. Eu gosto muito de você. Eu estava com ciúmes”.

Ele brigava, depois voltava ao normal. Depois me xingava de novo e voltava ao normal. Ele já me escreveu várias cartas bonitas, com dizeres lindos. Que a gente chega a suspirar e dizer: Caramba, que coisa linda! Esse é o homem!

É difícil sair de um relacionamento assim. Muitas vezes a gente está tão cega, achando que vamos mudar a pessoa e ele que acaba mudando nossa vida e para pior.

Tem mulheres que não saem do ciclo vicioso, violento, justamente por causa disso. Elas não têm esse apoio de saber pra onde ir, com quem contar, o que fazer depois de uma denúncia. Então ela fica, seja pelo fator financeiro, seja emocionalmente.

O meu caso não era tanto o financeiro. Provavelmente foi muito o lado emocional. Eu tinha meus filhos. Ele falava que eu não conseguiria cuidar dos meus filhos. Aquilo começou a entrar na minha cabeça e eu permaneci.

Quando ele fazia esses tipos de coisas, eu ignorava. Entrava no ouvido direito e saia no esquerdo. Eu não dava muita trela para ele, quando ele fazia esse tipo de coisa. Então é difícil. Tem mulheres hoje, que se fosse feita uma ronda geral, iam ver que muitas dela não saem desse ciclo por medo de não terem para onde ir e não saberem que fazer.

            

O que se lembra do dia do crime? Como foi o período no hospital?

Eu me lembro de tudo. Do começo ao fim. Eu lembro quando estava voltando da praça com o meus filhos e quando cheguei, do meu lado esquerdo, tinha um rapaz na escada falando com meu agressor. Esse rapaz estava falando para ele que eu estava namorando outra pessoa.

Dalí que começou toda a briga. Foi no momento que ele me chamou para perguntar se era verdade e eu falei que era. Ele começou a me xingar. Começou a falar os palavrões. Começou a falar as coisas desnecessárias. Coisas que poderiam me machucar verbalmente.

“Você é um puta! Você é uma prostituta! Você é uma safada!” Ele chegou a cuspir em mim. Tentou me derrubar da escada.

Nesse período, ele desceu com outro rapaz e pegou minha botija de gás. Eu subi logo em seguida e pedi pra minha vizinha para esquentar a comida para mim. Depois eu desci e fui arrumando a roupa. Fui na rua e voltei.

Já me perguntaram se eu tinha sentido medo dele chegar ao ponto que chegou. Eu digo não. Porque nossas brigas sempre tinham esses palavrões. Nunca foi em agressão física. Na minha cabeça eu tinha a ideia: Se um homem me bater, eu saio, se ele não me bater, eu fico.

Naquele momento, eu pedi para minha sobrinha buscar a comida e ela desceu. Logo em seguida ele apareceu. Ele gritou e perguntou por mim. Minha sobrinha disse que eu estava.

Na hora em que eu cheguei ao terceiro degrau da escada, eu vi o líquido descendo pelo meu corpo e ele ateou fogo. E a última frase dele foi: “Estou aliviado, minha raiva passou”.

Aí eu desci as escadas naquele desespero. Naquela correria. E o cara que fez a fofoca ficou ali, só olhando. Não fez nada para ajudar. E daí eu me joguei no chão. Minha sobrinha perguntou: “Tia o que a gente faz?” Eu disse, não sei…

Aí ela jogou água na minha cabeça, no meu corpo, meu cabelo estava queimando. Eu tenho três cicatrizes na cabeça e queimou meu cabelo todo e o que sobrou tiveram de cortar.

Dessa violência, eu me lembro de tudo. Das pessoas vindo e falando. Depois chegou o rapaz da ambulância. Ele disse que precisava encostar em mim. Me botou na maca e na hora que passei pelo corredor, senti minha garganta coçar e arder.

Eu falei que estava sentindo gosto de gasolina. “Você sabe o que ele tacou em mim?” Na hora que entrei dentro da ambulância eu fui desmaiando. Aí o rapaz deu um grito e eu disse: “Moço não me deixa morrer, tenho dois filhos para cuidar”.

Daquele momento para frente, eu já não me lembro de mais nada. Só lembro dois meses depois, quando acordei no hospital.

Como foi constatar as sequelas da violência? Como lida com a questão da autoestima, da vaidade?

Minha preocupação maior são os meus filhos. Eu não estava tão preocupada com a minha aparência. Eu não estava me importando em como eu tinha ficado. Eu queria sair daquele hospital para ver meus filhos. Eu não estava preocupada com minha aparência física. Eu não estava preocupada com minha beleza.

Sempre fui uma pessoa com a autoestima em dia. Nunca me preocupei. Não era uma mulher vaidosa, mas gostava de me arrumar. Eu mesma cuidava dos meus cabelos. Eu mesma fazia as minhas unhas. Raramente eu ia para um salão.

Sobre vaidade, eu não sou o tipo de pessoas que vai deixar de sair de casa porque eu estou queimada, porque meu rosto não está bonito, porque estou gorda. Nunca tive isso. Até hoje, não tenho.

Então, hoje eu me olho no espelho como qualquer ser humano, como qualquer pessoa. Vejo se o cabelo está bem arrumado, se a roupa está ok.

Na minha autoestima, isso não afetou em nada. Ele me afetou com as limitações. Hoje eu não consigo usar um batom ou fazer uma maquiagem, porque não consigo manusear os utensílios. Se eu achar um vestido bonito, eu vou comprar. Se eu gostar de um sapato, eu vou comprar.

Ele conseguiu me afetar por fora, em tudo. A autoestima da mulher nem sempre é estar com a melhor roupa, melhor aparência. Autoestima significa se sentir bem.

Eu recebi muitos comentários de amigas, que disseram que não teriam coragem de sair na rua como eu saio. De tirar uma foto. Que teriam vergonha. Tem gente que já me disse que preferia a morte a ficar da forma que eu fiquei.

Eu ouvi muitas coisas que me doeram. Mas, como meu objetivo é me manter de pé e viva, é cuidar dos meus filhos, não há vaidade no mundo que vá me derrubar.

Minha vaidade hoje é estar bem. Eu tendo paz, tenho tudo. Eu não troco a minha paz.

Hoje, você consegue identificar quando foi o início do comportamento abusivo e violento do seu ex-companheiro?

Hoje eu consigo. Mas antes não. Antes, a Marciane não conhecia a Lei Maria da Penha. Olha que a Lei Maria da Penha existe desde 2006. A Marciane conheceu a Lei Maria da Penha em 2019.

Olha quanto tempo eu fiquei sem informação. Hoje eu consigo identificar o que eu sofri lá atrás. Eu sofria violência psicológica, moral, patrimonial,  sexual e por último, a física. Hoje eu consigo identificar.

Ele começou pelo ciúme. Ele sempre foi um cara ciumento. Já vem da linhagem da família dele. Já agredia a mãe dele verbalmente. Agredia a irmã dele verbalmente.

Se ele maltratava as duas, as principais mulheres da vida dele, mãe e irmã, que ele deveria honrar, cuidar e proteger, imaginem a mim… O que seria da futura esposa dele?

Hoje eu consigo perceber tudo o que eu sofri lá. Tudo o que eu passei. Antes, se você me perguntasse, eu diria que não. Só um dia que eu comentei com a mãe dele que iria denunciar. Um dia eu falei que ia mandar meu irmão dar uma surra nele.

Ela era uma mãe que protegia o agressor. Ela aceitou e queria que todo mundo ao redor aceitasse as agressões dele. Então, são coisas que não conto, não comento, para deixar a família dele de lado.

Eu achava normal quando o Adré Luís me xingava. Eu não levava a sério. Eu praticamente ignorava. A minha mãe sofreu a violência, minha irmã sofreu violência e minha sobrinha sofreu.

Na minha cabeça eu pensava: Se ele me bater, eu vou embora, mas enquanto ele só xingava e falava, xingava e falava, eu não fazia nada. Eu ficava na minha. Às vezes ficava de boa, outras ficava irritada, chorava, ficava aborrecida. Ele me humilhava na frente dos outros. E ele não estava nem aí. Estava pouco se lixando.

Os comportamentos dele já vêm lá do berço. Pai agressivo. E aquilo teve continuidade na minha vida. Por último, veio a violência na qual ele me machucou feio.

Sobreviver a um crime tão brutal fez você se sentir mais forte? De onde vem a força para continuar em frente, criar seus filhos, trabalhar?

Primeiramente, minha força vem de Jesus. Eu creio que se não tivesse a Fé que eu tenho, a convicção de que existe um Deus que olha por mim, eu não estaria de pé.

Depois, minha força vem pelos meus filhos. Falo sempre para eles: A mamãe sobreviveu, primeiramente, por causa de Deus, porque ele permitiu e depois por causa de vocês.

Eu não estou viva por causa de amigos, família, colegas, conhecidos não. Estou viva por causa de vocês! Vocês tem sido meu combustível todos os dias. Vocês tem me motivado todos os dias

      

Mesmo com a turbulência que passamos, com as humilhações, com as rejeições, com os insultos, meus filhos continuam sendo o motivo pelo qual eu sigo lutando, pelo qual eu continuo vivendo.

Eu sempre fui uma mulher forte. Só que depois dessa violência, minhas impossibilidades mostraram que eu sou muito mais forte do que eu era. Porque se eu tivesse a força de hoje, lá no passado, eu não teria me submetido a tanta humilhação.

Hoje eu me considero uma mulher forte. Mas eu sempre falo que os fortes também choram. Os fortes têm sentimento. Os fortes precisam de um abraço. Os fortes precisam de um colo. Porque as pessoas nos acham fortes, mas se esquecem que nós somos fortes, mas também precisamos de acolhimento.

De umas semanas para cá, eu e meus filhos temos passado por momentos turbulentos, tristes. Só me falta o trabalho, pois vontade de trabalhar eu tenho. Mas aí eu vejo que 100% dos cursos que eu já fiz um dia, precisam das minhas mãos. Precisa da habilidade das minhas mãos, mas nem por isso eu desanimo.

Eu olho primeiramente para Deus e para os Céus e agradeço por estar viva. E o Senhor me deu mais um dia de fôlego de vida. “Eu sou um milagre, Jesus! Então obrigada, meu Deus!”

Esses dias minha filha se machucou e eu pude ver a feridinha dela. Meu filho caiu, ralou o joelho e eu pude mimá-lo, falar dengosamente. São pequenos detalhes em que eu digo: “Deus Obrigada!” Eu vi meu filho aprender a andar de bicicleta. Quem não tem aquele momento? “Ah eu vou parar… ah eu não consigo…”

Mas eu sou aquela de crer e acreditar no que vai acontecer, tanto quanto no que já aconteceu e no que está para acontecer ainda. Eu creio no impossível. Minha fé é inabalável.

Como se sente com relação ao seu ex-marido? Que tipo de sentimento a senhora tem por ele?

Infelizmente chegou o fim de André Luiz dos Santos, no dia último dia 26. Ele faleceu!

Mesmo que a família dele fique triste, eu tenho uma parte da família dentro da minha casa que também está sentindo. O meu filho de seis anos já chorou  hoje, mas esqueceu um pouco e começou a brincar.

Dormiu de tarde, coisa que ele não é de fazer. Até à aula de hoje eu deixei ele faltar. Mas sabe o que me chamou atenção? Foi quando dei a notícia que o pai dele tinha falecido e ele disse: “Mamãe eu já sabia que meu pai ia morrer!” Perguntei como ele sabia e ele só disse que sabia.

Então, agora vai começar uma nova etapa na minha vida! Os cuidados serão maiores com o meu filho, porque a situação ainda está muito recente. Daqui a pouco começa a amadurecer, porque ele começará a querer saber por que pai morreu, de que ele morreu. Ele já começou com essas perguntas.

Eu não faço a mínima ideia do que ocorreu. Eu não tenho informações nenhuma, nem mesmo sei a causa.

No dia da condenação dele, deu aquele medo, aquele calafrio, aquela sensação de insegurança. Aquela sensação do medo. Porque você tem de reviver toda a violência de novo. Tem de vê-lo. Tem de estar lá com ele. É uma sensação horrível. Mas eu tive de estar frente a frente com ele.

Foi no momento em que eu perguntei se ele estava feliz, se ele gostou do que fez, se ele estava satisfeito com o que ele fez. Quando eu fiz essa pergunta, ele só gesticulava com a boca: “Não”!

“Dessa vez você quis me machucar e você conseguiu.  Eu te perdoei várias vezes e não tinha a necessidade de você fazer uma coisa dessas. Só que a diferença é que você não machucou só a mim. Machucou os meus filhos. Que sofrem hoje por causa de uma imprudência sua”.

Ele não expressou nenhum arrependimento. Só falou desculpa. Desculpa, desculpa e desculpa. Só isso. Mas não teve aquela reação como todo mundo teve. Não teve. Foi um momento único.

Meu sentimento é de dó. Porque ele poderia estar aqui, vendo o filho dele andando de bicicleta. Levando o filho dele na escola. Ele poderia estar participando dos aniversários do filho dele. Ele poderia… Mas ele preferiu ficar na cadeia. Ele escolheu ficar na cadeia. E agora está morto.

Naquele momento ali do júri, todo mundo derramou pelo menos uma lágrima, menos ele. Acredito que desde que ele me viu no tribunal, ele entrou em depressão e a saúde dele começou a definhar.

A condenação dele te deu algum tipo de alívio, na época?

Fiquei aliviada, foi um momento muito esperado. Demorou quatro anos para que ele fosse julgado. 30 de agosto de 2022. Alí, para mim foi um alívio. A gente sabe que nossa justiça é falha, mas a justiça de Deus é infalível. Isso eu tenho certeza.

Já sobre a morte dele, é como se eu tivesse um milhão de coisas para falar e ao mesmo tempo não tivesse nada a dizer.

Algumas pessoas disseram que a morte dele foi o meu triunfo. Que eu triunfei! Mas como eu poderia me sentir triunfante com a desgraça de alguém?

Mesmo que ele tenha feito muita maldade, Deus conhece meu coração. Deus conhece meu caráter. Jamais eu iria celebrar a morte dele. Eu estou ciente da maldade dele. Estou ciente que ele me deixou deficiente. Ciente de que fiquei sem uma das pernas.

Meu único sentimento está relacionado ao meu filho. Pois querendo ou não, eu tive um filho com ele. Nesse momento estou sentindo a dor do meu filho. Eu preciso fazer com que ele seja forte.

Seu caso ganhou muita repercussão pela brutalidade, mas de certa forma, foi o que te libertou da violência. O que deveria ser feito para que casos de violência não avancem até esse ponto?

A polícia prende. Eles pagam fiança e a justiça solta. Dalí a pouco predem de novo, e soltam de novo. E por aí, os crimes vão acontecendo. Hoje o cara bate numa mulher e fica preso algumas horinhas. A Lei é falha, mas me senti aliviada sim, quando ele foi condenado.

Se em 100% dos casos que vão para a justiça, 50% for resolvido com o agressor dentro da cadeia, em regime fechado, sem direito a liberdade, tenho certeza que boa parte das mulheres ficará aliviada. Tenho certeza disso. O meu foi condenado e eu me senti aliviada.

Muitos lugares souberam da minha história. Seria bom eles darem um apoio de verdade para nós mulheres. Nós não temos apoio. Se você olhar a Lei, os presos têm mais condições e benefícios do que nós vítimas.

A gente, como vítimas de violência tem de ruminar a agressão e partir para cima. Eles não dão um crédito para a gente. Tanto que eu tenho relatos de amigas que vão na polícia denunciar e os agentes perguntam o que elas fizeram para serem agredidas. Ou, quando você consegue uma medida protetiva, que é apenas um papel, que não te protege de nada, o cara dali a pouco está na sua porta.

Então, eles precisavam ter um esquema tipo, se a Marciane acionou, pelo menos tirar a Marciane dali e colocar em outro lugar, já que manter vigilância é difícil. A mulher tem de ser tirada da mira do agressor.

O que acontece é que, infelizmente, eles são tão falhos, que temos de nos submeter a muitas humilhações para conseguir qualquer coisa.

Você pode ver na mídia, aparece o rosto da vítima, mas não aparece o rosto do agressor. Fulana de tal foi agredida, mas seu ex-marido continua solto, raramente aparece a foto do indivíduo.

Eles divulgam tanto as nossas fotos, mas quando esses caras saem da cadeia, eles vão para outro lugar e ali começam novamente a vida deles.

“Olá meu nome é fulano. Você é tão linda! Você é tão bonita!” Aquela conversa fiada toda e pronto! Ele vai fazer outra vítima, porque ela não sabia que um dia ele foi um agressor. Porque a imagem dele não foi divulgada.

É isso o que a justiça faz. Ela passa a mão na violência. Ela passa a mão nos agressores. Nos assassinos. Nos estupradores. Ela passa a mão tranquilamente. Temos uma Lei boa, mas na prática, ela não é muito útil. A gente acaba ficando muito vulnerável.

Por exemplo, quando eu sofri a violência, depois que eu fui melhorando, fui morar sozinha. Eu não tive apoio. Tive apoio ali na hora da família. Só que dali a pouco, a família me mandou embora de casa.

Só dois anos depois que eu descobri que havia a Secretaria da Mulher, na Serra, onde eu consegui um aluguel social. Há coisas em que nossa justiça só é boa no papel.

Quem são as pessoas que te apoiam? Pertence ou frequenta algum grupo de apoio a mulheres vítimas de violência? Acredita que  sua história pode ajudar a outras mulheres?

Fisicamente falando, não tem muita gente que me ajuda não. Mas tem muitas que torcem. Hoje eu faço parte de dois grupos: “Rede de Fortalecimento Feminino” e “Maria Vai Com as Outras”.

Conseguimos arrecadar um valor para comprar uma casa. A minha história tem impactado muitas vidas, ajudado a muitas mulheres e até homens. Sempre que saio para fazer alguma palestra, eu falo para os homens também. Falo com eles, puxo a orelha deles.

A gente vê muitos machistas dentro de casa. Acha que a mulher é empregada. Se ele quer uma mulher empregada, que pague a ela os direitos trabalhistas.

Teve um ano em que decidi tentar entrar como vereadora. Tive bastante apoio, mas depois das eleições, sumiu todo mundo. São pessoas que aparecem e vão. Que vêm e vão embora.

Não tenho uma rede literalmente, mas foi através do projeto Mulher Superando o Medo que consegui um tratamento para minha filha. Pensa num curso que me fez bem. Porque na Serra, cuidavam da mulher, mas não tinham recursos de cuidado para os filhos delas.

Eu preciso de ajuda, eu preciso de apoio, eu preciso de acolhimento físico, emocional e espiritual. Eu preciso. Se eu disser que não preciso, eu vou estar mentindo.

Tenho apoio e ao mesmo tempo não tenho. O que tenho aprendido é saber selecionar. Saber separar quem vai aproveitar da sua imagem, como teve muitos e depois sumiram.

Mas isso acontece, é do ser humano. Por isso, sou muito grata a Deus, por sobreviver e estar de pé. Por poder ser exemplo na vida de alguém. De poder passar na rua, alguém me ver e mencionar que me viu na TV, por exemplo.

“Graças a você, eu consegui sair de um relacionamento abusivo de 10 anos, de cinco anos. Eu estava em depressão até ver o seu vídeo, depois saí dessa condição. Eu estava querendo cometer um suicídio, o seu vídeo chegou e eu não tirei minha vida.”

São relatos que eu falo, Deus, eu sei que machucou, feriu muito! Mas é onde eu confirmo aquele ditado: Há males que vem para bem!

Foi um mal que fizeram a mim, mas é um bem que tem sido feito em muitas outras pessoas, muitas outras vidas.

 

Carlos Mobutto | Jornalista da AZ