Entrevista com Patrícia Deps: “Minha educação foi praticamente toda em escola pública. Mas eu tive estímulo e minha família valorizava o conhecimento”
O Consórcio de Notícias do Espírito Santo (CNES), por meio dos portais do grupo Política Capixaba, assumiu o compromisso de entrevistar, ao longo deste mês de março, 10 mulheres de diversos campos de atuação, para ressaltar com suas histórias, a importância do Dia Internacional da Mulher, comemorado no último dia 8.
A sétima entrevistada é a médica, professora universitária, pesquisadora e escritora, Patrícia Deps.
Dados do Conselho Federal de Medicina (CFM) apontam que no Brasil há atualmente 545.767 médicos, sendo 49,08% mulheres.
Já no Espírito Santo, dos 13.285 médicos vinculados ao Conselho Regional de Medicina (CRM-ES), 6.674 são mulheres, o que representa um pouco mais da metade, 50,2%.
Abrindo um parêntese histórico na interpretação dos números, que pressupõem a igualdade entre homens e mulheres na medicina brasileira, vale mencionar que a primeira escola de medicina do País foi criada em 1808, por D. João VI, na Bahia. Mas só em 1881, uma brasileira conseguiu se formar médica.
Maria Augusta Generoso Estrela, do Rio de Janeiro, conseguiu uma bolsa do Imperador D. Pedro II e se formou médica na New York Medical College and Hospital for Women, uma faculdade exclusiva para mulheres, nos Estados Unidos.
Ela concluiu o curso dois anos antes, em 1879, mas precisou completar seus 21 anos para ser diplomada. Nesse mesmo ano, foi concedido às mulheres o direito a cursar ensino superior no Brasil.
A primeira mulher a se formar em medicina no Brasil foi a gaúcha Rita Lobato Velho. Ela começou o curso na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, se transferiu para a Faculdade de Medicina de Salvador, na Bahia, e se formou em 1887.
De acordo com biógrafos, Rita Lobato teria se inspirado no exemplo de Maria Augusta, que por sua vez, se inspirara em outra mulher, Elizabeth Blackwell, a primeira norte-americana a concluir o curso de medicina, no ano de 1847.
Dando continuidade ao legado de inspirações e lutas da história das mulheres na medicina brasileira, além de médica, Patrícia Deps se tornou Professora Titular e Chefe do Departamento de Medicina Social e Docente Permante do Programa de Pós-Graduação em Doenças Infecciosas da Universidade Federal do Espírito Santo, em 2002.
Ela foi nomeada recentemente como Assessora Técnica Especializada da Coordenacão de Atenção a Doenças Transmissíveis na Atenção Primária da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS), do Ministério da Saúde. Patrícia assumiu como membro titular da SAPS no Comite Operativo de Emergencias (COE) de arboviroses (dengue, chikungunya e zika).
Confira a mais uma entrevista da série especial do Mês das Mulheres:
Quais são os desafios que enfrenta diariamente por ser mulher e quais são os pontos em que sua independência e carreira a fazem superar esses obstáculos?
O meu maior desafio foi, e ainda é, precisar me ausentar do convívio familiar, principalmente dos meus filhos e dos meus pais, mas também do convívio social.
Com o ritmo de estudo e trabalho que tenho, eu preciso abrir mão de coisas que são importantes para mim e para a maioria das pessoas. Independência: eu não sei viver de outra forma.
Ser independente financeira e emocionalmente, sempre dialogou com a minha carreira profissional, que é ponto de partida e chegada para ser independente. As duas andam comigo.
O meio acadêmico e médico é desafiador para as mulheres? Como percebe o preconceito de gênero no meio em que atua?
Eu tive sorte de ver minha mãe, uma professora, que teve dois, e às vezes três empregos. Meu pai nunca a criticou, ao contrário, se orgulhava e respeitava a carreira dela. O machismo no Brasil é estrutural. Está em todos os lugares. Mas foi na Inglaterra que eu senti mais dificuldades sendo uma mulher brasileira, mesmo sendo uma profissional respeitada.
Sou feminista, e evito ambientes machistas e a companhia de pessoas que se comportam assim.
Enumere as suas conquistas profissionais. Por que escolheu o meio acadêmico e de pesquisa?
Quando me formei, eu pensei que seria livre para escolher onde, quando e o que quisesse fazer profissionalmente. Mas não foi bem assim. Formei em medicina em 1993, e após alguns meses que tinha me mudado para São Paulo, para fazer a especialização em dermatologia na UNIFESP, eu engravidei.
Apesar de ter conhecido o maior amor do mundo, o amor trouxe a limitação da minha independência física e emocional, e precisei adiar minha carreira profissional. Logo depois veio a minha filha, e por uns 15 anos me dividi entre carreira e família. Tipicamente, como qualquer mãe de classe média, levava e buscava os filhos pra lá e pra cá, e o foco era a saúde e educação deles.
Com muito esforço, paralelamente, atendia meus pacientes na clínica dermatológica, fiz mestrado em doenças infecciosas, e voltei para São Paulo para o doutorado. Em 1999, fui contratada como professora do curso de medicina da EMESCAM e depois em 2002 na UFES, onde sou professora titular.
Em 1997 recebi uma homenagem na ALES por contribuicao em pesquisas em hanseniase, e a Camara de Vereadores do Municipio de Vitoria com o Titulo de Cidada Vitoriense. Em 2007 ganhei o Premio La Roche Posay de Melhor Projeto Latinoamerico de Pesquisa Cientifica em Dermatologia.
Em 2008, morei em Londres com meus filhos, fui fazer um pós-doutorado. Foi maravilhoso. Aprendemos muito. Dez anos depois fui para Paris sozinha, com apenas duas malas, sem conhecer ninguém, fazer um segundo pós-doutorado. Foi difícil, mas também incrível.
Com as experiências internacionais, muitas portas se abriram para parcerias de pesquisa e aproveitei o que pude. O objetivo é ampliar ações de internacionalização das Universidades Federais, processo de extrema importância para o desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro.
Nos últimos anos venho participando de organizações governamentais e não governamentais internacionais para pesquisa e combate à hanseníase. Estou em lugares que nunca pensei que pudesse estar, como Vice-President for the Americas of the International Leprosy Association, membro da WHO Technical Advisory Group-Leprosy (Global Leprosy Programme), Board as Secretary of the European History Society of Dermatology and Venereology (European Academy of Dermatology & Venereology), membro do Scientific Review Committee / Leprosy Research Initiative (Netherlands Leprosy Relief).
E finalmente fui convidada para ser Assessora Especializada em Hanseníase, Coordenação de Doenças Transmissíveis na Atenção Primária, da Secretaria de Atenção Primária do Ministério da Saúde do Brasil.
Seu estudo sobre a hanseníase te proporcionou reconhecimento mundial. De onde surgiu a vontade de estudar essa doença?
Na dermatologia eu conheci a hanseníase. Doença desafiadora, milenar, curável, mas que causa muitas incapacidades, se não diagnosticada precocemente.
A hanseníase esconde muitos mistérios, e envolve história, estigma e discriminação. Ainda é problema de saúde pública em mais de 100 países e no Brasil é endêmico. Provavelmente teremos um aumento no número de pessoas diagnosticadas nos próximos anos. O desconhecimento retarda o reconhecimento, e o diagnóstico tardio é um problema. Neste sentido, precisamos capacitar os profissionais de saude para oportunizar o diagnostico precoce e curar estas pessoas desta doenca.
Como é participar de um programa da ONU? De que forma isso contribui para o desenvolvimento das pesquisas em âmbito local?
Ter sido selecionada pela equipe do Programa Global de Hanseníase (Global Leprosy Programme) da OMS foi uma enorme satisfação. Meus filhos se orgulham e curtem muito minhas conquistas, e sempre me motivam a seguir o meu caminho.
Meus pais sempre me incentivaram no crescimento profissional, e da mesma forma se orgulham muito das minhas escolhas e conquistas.
Participo de grupos muito de especialistas que pesquisam e agem mundiais para melhorar a vida das pessoas afetadas pela hanseníase. Posso contribuir com a elaboração de políticas públicas para o combate à hanseníase não somente no Brasil, mas em países ainda mais carentes que o Brasil.
Poder ajudar estes países tem sido uma grande satisfação. Espero contribuir ainda mais.
A senhora atua na pesquisa de outras doenças? Quais são os problemas relacionados à pele que mais geram problemas no Brasil?
Sim, atuo em várias áreas e persigo a polimatia. Sou médica, dermatologista, hansenologista, e paleopatologista. Além de pesquisas nestas áreas, me envolvo em projetos em história da medicina, ética médica, psicologia médica, direitos humanos, saúde única, políticas públicas, imigração e antropologia médica.
Eu participei como autora de um livro publicado na Franca em 2021, sobre tabus em dermatologia. Posso dizer que brasileiros são muito afetados por doenças como a acne, psoríase, câncer de pele, dermatites (eczemas) alérgicas e de contato, e doenças infecciosas e parasitárias de pele.
Qual a importância que os estudos têm na sua vida? Você se imaginava médica desde criança?
Eu continuo estudando, adoro. Me adapto bem na ‘cadeira de estudante’. Hoje posso simplesmente dizer que ‘eu não sei’, e nao me sentir mal. Antes ficava envergonhada de nao saber.
Queria ser astronauta até os 14 anos, mas ‘aterrissei’ e decidi ser médica.
Deixei a casa dos meus pais, em Alegre, aos 16 anos. O objetivo em 1986 não era ‘viver’, mas estudar para passar no vestibular do curso de medicina da UFES. Esta foi minha primeira vitória. Pesquisadora foi uma consequência. Para mim, viver assim é a forma mais natural e honesta, já que faço perguntas e quero respostas.
No terceiro ano do curso de medicina encontrei a pele, e suas alterações – a dermatologia – e foi paixão no primeiro dia de aula.
O departamento de pesquisa da UFES está próximo do nível dos departamentos de pesquisa das universidades de ponta?
A UFES é um celeiro de ótimos profissionais. Os pesquisadores brasileiros são versáteis, dedicados, competentes e fazem muito com muito pouco. São pouco reconhecidos e pesquisam porque amam o que fazem. Mas se fôssemos valorizados como deveríamos, o Brasil ganharia muito. Nos aproximaria do seleto grupo de países que têm a ciência, a inovação e a tecnologia como principal fonte do PIB.
Por 25 anos trabalhei na assistência e na dermatologia clínica e cirúrgica. Cuidei de pessoas de forma individualizada. Tenho muitas saudades dos ‘meus pacientes’, mas pretendo continuar minha carreira na saúde pública, podendo ajudar um número ainda maior de pessoas. Neste sentido, resolvi me aproximar da política, e fui estudar o assunto, embora não tenha me candidatado. Conheci pessoas incríveis neste processo, que me valorizaram.
Recebi um convite para compor a equipe de uma nova coordenação no Ministério da Saúde, e resolvi aceitar o desafio.
Atualmente, fui nomeada e minha primeira missão está sendo atuar como membro titular do COE de arboviroses, pela Secretaria de Atenção Primária em Saúde, do Ministério da Saúde.
O que deve ser feito para que mais jovens se interessem e tenham condições de alcançar o nível de estudos que a senhora tem?
Existe um fenômeno chamado Sociedade do Conhecimento. Estamos longe dela. Para começar este processo, precisamos estimular e valorizar o conhecimento científico, tecnológico e a inovação. Esta combinação de ações precisa estar comprometida com a melhoria da vida de todas as pessoas de um país tendo em mente o conceito de equidade.
Desta forma, todos sabemos o caminho: educação de qualidade para todos as crianças brasileiras e cuidar do desenvolvimento intelectual dos nossos jovens. Para isso, precisam ser saudáveis (física e mentalmente) e estar alimentados. Parece simples, mas existem muitas forças que atuam para que isso não aconteça.
Minha educação foi praticamente toda em escola pública. Mas eu tive estímulo e minha família valorizava o conhecimento.
O que te motiva profissionalmente? Quais são seus sonhos?
Na minha opinião, para ser um bom profissional médico é necessário gostar de estudar muito de tudo, ser ético, gostar de gente e do meio ambiente.
Cresci com minha mãe pedindo para parar de estudar e ir almoçar, e décadas depois meus filhos fazem a mesma coisa, me pedem para parar de trabalhar/estudar para descansar.
Se somar os anos que me dediquei à minha carreira, início do curso de medicina até o último curso que fiz, foram uns 35 anos. Mas não quero parar por aí. Esta é minha vida. É assim que me sinto bem. Produzo conhecimento tanto quanto consumo.
Fico triste quando vejo quantas doenças ainda afetam nossa população. Doenças que poderiam ter sido eliminadas ou mesmo controladas, e não foram por falta de boas politicas públicas de saúde, educação e saneamento básico.
Estou preparada para me dedicar integralmente à saúde pública brasileira. Quero ver o Brasil crescer de verdade, sem riscos de retrocesso.
Estamos há mais de um século tentando controlar um tipo de mosquito, e ainda não conseguimos. Estamos enfrentando uma crise sanitária em centros urbanos por doenças transmitidas por picadas de mosquitos.
Isso é um reflexo do atraso enquanto organização social, pois deveríamos ser capazes de nos organizar e faxinar nosso País. E não conseguimos nem isso. Sonho ajudar desta forma, pensar num mundo melhor para todos.
Também flerto com a literatura. Com ela posso ficcionar sem culpas. Adoro poder tirar férias e escrever. Me oportunizei duas vezes e produzi dois romances: o ‘Devotada Juliette’, uma ficção sobre o escritor francês Victor Hugo e sua amante Juliette Drouet; e o ‘Vida fabulosa de Joana d’Arc’, um romance politicial classificado como místico-religioso. Eu leio e releio estes livros e gosto do que produzo.
Este último foi tema de um doutorado em literatura na UFPB, que analisou o romance brilhantemente, foi um presente para mim.
E finalmente, mas longe de ser o último, publiquei alguns livros técnicos sobre hanseníase, e dois sobre popularização da ciência que foram publicados na Franca, ‘The day I changed my name: Hansen’s disease and stigma’ (Editions de Boccard, Paris) e Ces questions que vous n’osez pas poser a votre medicin’ (HumensiSciences, Paris).
Sou muito grata a muitas pessoas que me ajudam e confiam em mim. E se fosse dar algum conselho a alguem, eu diria: procure algo que goste de fazer e faça. Mas se tem condicoes de ajudar pessoas que sofrem, ajude.
Carlos Mobutto | Jornalista da AZ
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