Lei Rouanet: incentivo à cultura ou distorção de recursos públicos?

Lei Rouanet: incentivo à cultura ou distorção de recursos públicos?

A Lei Federal nº 8.313/91, conhecida como Lei Rouanet, há décadas ocupa o centro de debates sobre financiamento da cultura no Brasil. A norma criou mecanismos legais para que empresas e pessoas físicas possam destinar parte do imposto de renda devido para patrocinar projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura.

Do ponto de vista jurídico, não há ilegalidade: a lei é clara ao permitir a renúncia fiscal como instrumento de fomento. É o Estado, abrindo mão de receita tributária, para que a sociedade civil — por meio da iniciativa privada — selecione, dentro de parâmetros legais, quais manifestações culturais serão apoiadas.

Contudo, o desenho legal, embora bem-intencionado, se revelou vulnerável a distorções graves, tanto no campo da interpretação quanto na prática. O que era para ser um incentivo à democratização do acesso à cultura, muitas vezes foi transformado em um subsídio indireto para artistas já consagrados, com ampla capacidade de captação junto ao mercado e que, curiosamente, pouco ou nada investem do próprio patrimônio em seus espetáculos.

O problema é que os que deveriam ser os verdadeiros destinatários do programa, não alcançam o incentivo da iniciativa privada, justamente por não terem relevância almejada pelos empresários, que justifique a vinculação ao nome de sua empresa, sendo destinados, os recursos, quase que exclusivamente, aos grandes artistas que podem (ou deveriam) investir em seus próprios negócios, como qualquer outro empreendedor, assumindo o chamado risco do negócio.

Mas também não está se dizendo que está errado grandes artistas captarem recursos — isso é, em tese, legítimo, principalmente no para eventos gratuitos, objetivo principal da política de incentivo, levar cultura a todos, sem distinção. A distorção se evidencia quando esses artistas, com despesas inteiramente financiadas por renúncia fiscal, ainda se apropriam da bilheteria integral dos eventos. Ou seja, a estrutura foi bancada pelo contribuinte, mas o lucro fica com o artista ou produtor, que não arcam com os riscos típicos da atividade privada.

Além disso, é inegável que muitos projetos com qualidade e relevância social ficam de fora por não contarem com redes de influência ou apelo de mercado.

Nesse sentido, a desigualdade no acesso aos recursos da Lei Rouanet evidencia uma falha de justiça distributiva: os incentivos não alcançam, com a mesma força, a cultura periférica, regional ou de base comunitária — como muitas das expressões artísticas que florescem aqui no Espírito Santo.

Em resumo, entre os prós da Lei Rouanet, destaca-se a existência de uma legislação que tenta equilibrar fomento e liberdade de escolha. Evita-se que o Estado dite o conteúdo artístico e estimula-se a pluralidade de propostas. Mas entre os contras, salta aos olhos a necessidade de revisar critérios de contrapartida, de regionalização e de retorno social, sobretudo quando há lucro privado envolvido.

A legalidade da Lei Rouanet, portanto, não está em debate. O que se questiona — e precisa urgentemente ser repensado — é a equidade do modelo de aplicação.

É um equívoco ético e político permitir que artistas, muitas vezes milionários, fiquem com o lucro de eventos cuja produção foi bancada por impostos redirecionados — renúncia essa que impacta diretamente na arrecadação do Estado. Em outras palavras: parte do que falta na saúde, na segurança e na infraestrutura pode estar financiando camarins luxuosos e cachês milionários.

A cultura deve ser valorizada, sem dúvida. Mas o uso de recursos públicos, ainda que indireto, exige transparência, proporcionalidade e responsabilidade social.

A arte, quando financiada por todos, deve também ser acessível e útil a todos.