Mitos brasileiros e o pós PT

Por Luiz Paulo Vellozo Lucas
O historiador israelense Yuval Noah Harari afirma em seus livros que os mitos são as engrenagens invisíveis que movem as sociedades humanas. Eles são construções intersubjetivas que existem apenas enquanto cremos neles coletivamente e por isso possuem extraordinário poder de moldar impérios, economias e valores éticos. São o nexo fundamental entre história, ideologia, ciência e futuro.
A mitologia é assim, qualquer sistema de crenças coletivas que une grupos humanos em torno de ideias compartilhadas. A democracia, que se firmou no Brasil como mito politico principal ao longo da resistência ao regime militar, tomou forma concreta na frente ampla que elegeu Tancredo Neves no Colégio Eleitoral.
A democracia sustentou o governo de José Sarney, elaborou a Constituição Federal de 1988 e patrocina até hoje um regime de liberdade política e eleições presidenciais livres e diretas. A agenda de reformas e aperfeiçoamentos das instituições da democracia brasileira é extensa e complexa. A premissa é rechaçar qualquer ameaça de retrocesso.
A politica econômica do regime militar deixou a hiper inflação como herança maldita. Toda a agenda nacional nos dez primeiros anos de regime civil foi ocupada pelo combate à hiperinflação com teorias novas, planos e inovações institucionais. A construção de moeda estável e de uma economia de mercado contemporânea, integrada ao mundo, torna-se o mito econômico que une o país e toma forma concreta no Plano Real e nas reformas implantadas nos oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso.
A mitologia do Lulo petismo tem sua origem numa estratégia de oposição ao regime militar muito diferente da linha da frente ampla democrática. A perspectiva de luta de classes sectária, anti liberal e anti capitalista marca a atuação do PT desde sua fundação. Não participa e faz ferrenha oposição às duas primeiras etapas da construção republicana do Brasil depois do fim do regime militar.
Não acredita e se opõe `a Nova República, não se compromete com a “democracia burguesa” nem muito menos com o “projeto neo-liberal”. A eleição de Lula em 2002 inaugura o ciclo hegemônico do Lulo petismo centrado na narrativa fiel ao sectarismo de classe original, do combate às desigualdades ao lado dos mais pobres contra as elites exploradoras e privilegiadas. O ciclo hegemônico do Lulo petismo foi embalado pelo melhor marketing moderno, pelo aparelhamento despudorado da máquina do estado e pela força do carisma populista e pragmático do seu líder. Este ciclo está esgotado.
O desastre econômico, as manifestações populares e o impeachment de Dilma Rousseff, somados aos escândalos revelados pela Lava Jato foram o caldo de cultura, o pântano politico de onde emerge Jair Messias Bolsonaro, o mito. Sua eleição em 2018 foi ancorada na releitura digital da narrativa da extrema direita internacional e nas figuras simbólicas de Paulo Guedes representando o compromisso claro com um capitalismo sem disfarce e Sergio Moro encarnando a faxina moral da corrupção no andar de cima da politica brasileira e das grandes empresas. Ainda que seus discípulos fieis o tenham por mito, o bolsonarismo não conseguiu emplacar no Brasil um ciclo mitológico.
Sua derrota em 2022 para um Lula, líder improvável de uma frente ampla democrática, se deve ao negacionismo na pandemia combinado com o auto isolamento politico de seu governo nos estreitos limites do saudosismo do regime militar e dos lemas desenterrados do integralismo (Deus, Pátria e Família).
A estratégia de enxergar a crise fiscal e as disfunções do sistema tributário com a lente sectária da luta de classes não corre o risco de dar certo. O Brasil quer pensar seus problemas e as alternativas de solução num ambiente pós PT, sem ameaça `as conquistas mitológicas da história recente: a democracia e a estabilidade da moeda.

Engenheiro, Mestre em Desenvolvimento Sustentável, ex-prefeito de Vitória-ES e membro da ABQ-Academia Brasileira da Qualidade.