Seminário celebra os 60 anos do Golpe Militar com reflexões e debates
Participantes reforçaram a importância de manter viva a memória do período e reconhecer a responsabilidade institucional pela violação de direitos humanos
Sem memória, não há futuro. Um seminário para lembrar os 60 anos do Golpe Militar foi realizado na Assembleia Legislativa (Ales) com esse tema. Os participantes do evento destacaram a necessidade de a data (31/03/1964) e o período da ditadura militar no Brasil sejam sempre lembrados para que não se repitam.
“Infelizmente, esses 60 anos deveriam ter sido marcados por atividades muito mais afirmativas do processo do golpe e dos impactos disso até hoje. É preciso enfrentar essa memória não como algo do passado, mas como algo do presente”, frisou a proponente do debate, deputada Camila Valadão (Psol).
Três presos e torturados pela ditadura militar participaram do encontro: Perly Cipriano, Francisco Celso Calmon e Angela Milanez. Milanez falou sobre como a sua vida mudou devido à perseguição que ela e a sua família sofreram.
Estudante de Geografia na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) à época, ela foi presa e torturada durante dois meses. “Rasgaram minha roupa (…). Só conversavam comigo sem roupas”, contou ela, relatando, ainda, vários tipos de torturas físicas e psicológicas pelas quais passou.
Após a sua soltura, ela precisou fugir com o marido Iran Caetano, médico e militante do PCdoB, e os dois passaram por vários estados do Brasil, como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pará e Maranhão. “Me proibiram de estudar, não consegui terminar o curso”, revelou.
O filho dela, Iran Milanez Caetano, estava na plateia. Hoje, ele preside o Sindicato dos Servidores Públicos do Estado (Sindipúblicos). Mas ele usou a palavra para homenagear a mãe: “Vocês veem essa pessoa sorridente, mas ela sofreu muito”. E completou: “A função de um pai e de uma mãe é entregar um mundo melhor para os seus filhos e ela conseguiu”, disse.
Sequestro
Foi em 4 de novembro de 1969 que o ex-guerrilheiro Francisco Celso Calmon foi sequestrado e preso pela ditadura militar no Rio de Janeiro. Como ele lembrou, foi na mesma data em que Carlos Marighella, um dos expoentes da luta contra o regime militar, foi assassinado em São Paulo.
Calmon ressaltou a importância de a Assembleia Legislativa (Ales) rememorar os 60 anos do golpe. “A Casa do Povo não pode ficar de costas para a pauta da memória e da justiça”, comentou.
Para marcar a data, ele organizou o livro “60 Anos do Golpe – Gerações em Luta”. A obra reúne artigos escritos por diversos pensadores e sobreviventes do regime militar de todo o Brasil. “Um livro é um instrumento que fica para a história”, afirmou.
O advogado e escritor ainda criticou o posicionamento do governo federal de não realizar ações em memória do golpe de 1964. “A democracia é um estado permanente de construção”. Ele também aproveitou para levantar duas questões que, segundo ele, são necessárias: a retomada da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos da ditadura e a “punição para os golpistas de ontem e de hoje”.
Memória
A importância de preservar a memória da ditadura também foi reforçada pelo ex-preso e torturado pelo regime militar Perly Cipriano. Ele citou, como exemplo, a Casa da Morte, localizada em Petrópolis (RJ), onde, segundo ele, pessoas eram presas, torturadas, assassinadas e esquartejadas. Depois, os corpos eram enviados para a Usina de Cambahyba, em Campos dos Goytacazes (RJ), para serem incinerados. “É preciso associar a ditadura com o nazismo”, afirmou.
Já o defensor público da União Antonio Ernesto de Fonseca e Oliveira comentou sobre a Fazenda Guarani, em Carmésia (MG), onde muitos indígenas foram mantidos. “Foi um campo de concentração”, comentou.
A informação foi endossada pela procuradora da República Elisandra Olímpio, que revelou que há vestígios do envolvimento da antiga Aracruz Celulose na expulsão dos povos tradicionais (indígenas e quilombolas) da região.
“Tupiniquins e guaranis aqui do estado foram levados para esse reformatório (Fazenda Guarani), que era verdadeiramente um campo de concentração, isso com o apoio da Funai (Fundação Nacional do Índio) e da empresa (Aracruz Celulose)”, comentou. “Foram coisas terríveis que aconteceram e que sofrem uma espécie de apagamento”, completou.
Além disso, o defensor Antonio Ernesto de Fonseca e Oliveira citou os impactos do regime não só nos direitos humanos, mas em outros aspectos: “A ditadura não foi só cruel com os militantes, ela foi cruel com a sociedade e aprofundou a desigualdade. Ainda tem uma lenda de que a ditadura desenvolveu o país. A ditadura deixou foi muita fome e muita inflação. Não é só questão de direitos humanos, ela foi socialmente foi horrível e economicamente também”, comentou.
Comissão da Verdade
Entre 2012 e 2017 funcionou no Espírito Santo a Comissão Estadual da Memória e Verdade “Orlando Bonfim”, instituída pela Lei 9.911/2012. Uma das integrantes foi a professora da Ufes Eugenia Raizer, que apresentou alguns dados compilados pela comissão.
Segundo os registros oficiais, cinco pessoas foram assassinadas pela repressão, sendo quatro trabalhadores rurais e um estudante não identificado. No levantamento feito pela comissão seriam, na realidade, oito pessoas mortas. “Nós sabemos os nomes dos nossos mortos, mas nos registros oficiais só constam os nomes dos quatro trabalhadores rurais”, disse.
Noventa e cinco pessoas foram alvo de investigação por participarem de reuniões políticas e 26 foi o número total de agentes autores das violações aos direitos humanos e/ou responsáveis por investigações das ações políticas no Espírito Santo. Os autores eram membros do Exército, Polícia Militar, Polícia Civil, Aeronáutica e do Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
Portanto, uma das conclusões da comissão foi a necessidade de reconhecimento da responsabilidade institucional pela ocorrência de violações de direitos humanos: “Não existe dúvida da responsabilidade do Estado com relação aos perseguidos”, afirmou a professora.
A deputada Camila Valadão citou exemplos de outros países latino-americanos para tentar reparar os impactos da ditadura, como o Chile, que realizou “agenda intensa” no ano passado para marcar os 50 anos do golpe militar no país. Além disso, na capital Santiago, como lembrou a parlamentar, há um Museu da Memória e dos Direitos Humanos.
“A ideia é que a gente não apague essa história. Esse golpe precisa ser contado, recontado, explicitado para a gente construir o presente e o futuro. Não há futuro sem memória”, salientou.
60 anos
O golpe de estado no Brasil foi a deposição do presidente João Goulart por um golpe militar ocorrido de 31 de março a 1º de abril de 1964. Os governos militares duraram até 1985, quando, em eleições indiretas, Tancredo Neves foi escolhido para o cargo de presidente da República.
Fonte: Assembleia Legislativa
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