Entrevista com Camila Valadão: “Me considero uma privilegiada sim, na medida em que eu consegui ter acesso ao estudo, à formação superior”

Entrevista com Camila Valadão: “Me considero uma privilegiada sim, na medida em que eu consegui ter acesso ao estudo, à formação superior”

O Consórcio de Notícias do Espírito Santo (CNES) e os portais do grupo Política Capixaba estão homenageando as mulheres, neste dia internacionalmente dedicado às reflexões sobre seus papeis, espaço, lutas e direitos na sociedade, por meio da informação.

Ao longo de todo o mês de março, serão publicadas entrevistas com mulheres atuantes e determinantes em diversos campos da sociedade capixaba.

A ideia é levar ao conhecimento dos leitores a trajetória de mulheres, que com sua história inspiram a sociedade a desconstruir as opressões culturais do machismo e do preconceito.

A série de entrevistas especiais do Mês da Mulher começou com Juíza Titular e Coordenadora de Enfretamento da Violência Doméstica, Hermínia Azoury.

Clique aqui e confira a entrevista com Hermínia Azoury

Dessa vez, a entrevistada é a Deputada Estadual e mulher mais votada da história da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, Camila Valadão (Psol).

Além do cargo atual, a parlamentar foi vereadora pela capital Vitória, onde foi a primeira mulher negra a ser eleita.

Camila é mestre e doutora em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e ressalta o papel determinante que a educação teve no seu desenvolvimento pessoal.

Confira a segunda entrevista especial do Mês da Mulher:

Sua atuação pública teve início nos movimentos estudantis. Como foi sua educação quando criança? Em que condições de renda a senhora foi educada e o que te atraiu a participar de mobilizações na universidade?

Eu sou de uma família popular de trabalhadores e trabalhadoras. Meu pai era um profissional autônomo e minha mãe dona de casa, responsável pelo cuidado comigo e meu irmão, no cuidado dos filhos, portanto.

Minha educação foi muito pautada no respeito e, desde muito cedo, na diversidade. Meus pais eram militantes do Partido dos Trabalhadores (PT), acompanhavam o movimento de associação de moradores, de comunidade no município de Serra. Então, minha vida foi pautada por uma lógica de educação, que ensinava muito para o respeito a todos os direitos.

Como eu disse, sou de uma família de trabalhadores bem popular. Nós morávamos num bairro popular, chamado Laranjeiras, na Serra. Um bairro hoje muito diferente do que era. E a nossa vida foi como a vida de muitos trabalhadores brasileiros. Muita dificuldade para pagar as contas, muita batalha para poder garantir saúde, educação e alimentação, mas felizmente, meus pais obtiveram sucesso nessa batalha.

Penso que foi essa trajetória que fiz, em virtude da minha família, ainda quando criança que me atraiu a participar de movimentos estudantis. Eu acabei tendo a oportunidade de participar de muitos espaços de reunião do PT, de movimentos sociais. Eu acho que isso, desde cedo, foi mobilizando o meu olhar para esse compromisso com o social.

A senhora batalhou pela implementação da política de cotas nas universidades. Qual a importância das cotas?

Eu sou da geração do movimento estudantil que acompanhou o processo de implementação das cotas na Ufes. Acompanhei na época os atos que aconteceram em defesa de cotas, atos bem polêmicos, que contavam com oposição ferrenha, dos maiores cursinhos pré-vestibulares pagos do Estado.

Eu acho fundamental, as políticas de ações afirmativas em todo o País. É uma política que visa reconhecer que desigualdades existem e são concretas, criam desvantagens e que as ações afirmativas são uma das estratégias para a gente criar espaços e fortalecer movimentos em defesa exatamente que se avance nessa sociedade ainda tão desigual.

Não fui aluna cotista, pois como eu disse, a política de cotas foi implementada posteriormente. Então, eu acompanhei a implementação dessa política já estando na universidade como estudante.                

A segregação existe. A política de cotas na verdade reconhece que essa segregação é concreta e ela cria mecanismos de reverter essa segregação, ou seja, ela afirma a desigualdade. A desigualdade partindo da realidade, para avançar rumo à igualdade, ou seja, eu reconheço que a desigualdade existe, crio mecanismos para acabar com essa desigualdade, exatamente para que a gente tenha condições de igualdade no futuro.

A senhora fez um trabalho na proteção de jovens em território vulnerável, desenvolvido nos bairros de Serra. Que resultados positivos gostaria de enumerar e de que forma a senhora trabalha para ampliar o alcance desse tipo de projeto?

É muito importante falar disso porque a juventude não é entendida como uma parte da população que precisa de investimentos robustos de políticas públicas. E as ações para juventude acabam restritas àquele rol de politicas obrigatórias, como, por exemplo, a escolarização.

Então a gente tem um desafio enorme, que é ampliar as políticas públicas destinadas para a juventude. Criando alternativas para os nossos jovens do ponto de vista de formação, de capacitação, de acolhimento e convivência.

Eu tive a oportunidade de trabalhar no atendimento de jovens no território de Feu Rosa e Vila Nova de Colares (Serra) e eu particularmente considero como uma experiência muito bem sucedida, à medida que encontrei, por exemplo, vários jovens que frequentaram o projeto em que eu trabalhava.

Anos depois do projeto, eu encontrei muitos desses jovens se formando em faculdade, participando de projetos sociais, trabalhando. Eu acho que sim,  foi uma experiência bem sucedida e acredito muito nos projetos sociais, para oportunizar os nossos jovens.

Os títulos acadêmicos e sua função pública colocam a senhora num rol seleto, no que se refere ao nível socioeconômico. Se considera privilegiada? A que atribui o seu desenvolvimento pessoal? Como pensa ser possível proporcionar essa evolução para mais pessoas?

Me considero uma privilegiada sim, na medida em que eu consegui ter acesso ao estudo, à formação superior.  Consegui, a partir da universidade pública, do financiamento estudantil e das bolsas de pós-graduação, fazer mestrado, fazer doutorado.

Então, eu devo meu desenvolvimento pessoal às politicas públicas. Essencialmente às politicas públicas de educação, que possibilitaram que eu pudesse hoje ser uma mulher jovem, com doutorado, que consegue falar mais de uma língua. Então tudo isso eu devo ao investimento público nas políticas de bolsa.

Penso que para a gente proporcionar essa evolução para demais pessoas, o melhor caminho é investir na educação. É possibilitar a outras jovens e outros jovens os mesmos acessos que eu tive, podendo cursar o ensino superior, acessar um financiamento estudantil, podendo ter bolsa para se dedicar aos estudos.

Eu acho que essa é a melhor forma de a gente oportunizar para os jovens essa evolução do ponto de vista da formação, do ponto de vista pessoal.

A senhora foi a primeira mulher negra eleita para ocupar um posto na Câmara Municipal de Vitória e também a primeira pessoa eleita pelo PSOL no Estado. O que isso representa?

Isso representa muita coisa do ponto de vista individual. Que é um grande sucesso dentro daquilo que a gente elencou como estratégia política. Então, o fato de termos chegado a esse mandato político, mantendo princípios, mantendo a coerência, para nós é uma felicidade,

Por outro lado, chegar sendo a primeira mulher negra diz muito de como esse sistema político ainda é desigual, de como esse sistema político ainda precisa avançar.

Ou seja, representa o quanto ainda a gente tem muitas barreiras para que mulheres negras cheguem nesse espaço. Então, se por um lado nossa vitória é uma grande alegria, uma grande honra, por outro lado é também um instrumento de denúncia.

A senhora se tornou a mulher mais votada da história do legislativo estadual do Espírito Santo. Como traduz esses números? O que acredita representar, em termos de esperança e expectativa, para outras mulheres e jovens negros?

Esses números, que foram muito significativos, representam que a gente fez um bom mandato. Um mandato reconhecido no município de Vitória, onde eu fui a parlamentar mais votada, entre deputados estaduais e federais, onde eu era vereadora.

Acho que é sim uma resposta a todas as demonstrações de violência que nós enfrentamos na Câmara de Vitória. Eu acho que é uma resposta a toda política de ódio e de misoginia que a gente, bravamente, enfrentou no parlamento municipal.

Eu acho que esse número em Vitória traduz muito. Traduz também que as pessoas desejam um parlamento com parlamentares que têm outra prática política.

O que chamo de outra prática politica é alguém chegar ao parlamento e não se vender. Alguém que mantém seus princípios, mantém a coerência, mantém a firmeza. E foi isso o que fizemos ao longo do nosso mandato.

É uma responsabilidade enorme, estar nesse espaço que é extremamente desafiador. Chegar nesse espaço, com essa representatividade toda em termos de votos, gera muita expectativa no nosso mandato. E essa expectativa nos honra muito.

Por outro lado nos dá também um certo desespero, porque a gente tem muito trabalho pela frente. Tem muito trabalho a ser feito, para poder não frustrar essas expectativas.

A senhora nomeou seu mandato na Câmara de Vitória em homenagem a Ilma Viana, pedagoga, sambista e militante do movimento negro. Fale um pouco sobre o significado dessa homenagem e diga que outras mulheres são suas referências.

Quando nós escolhemos nomear o mandato, a ideia era dar um nome coletivo para essa construção, como uma forma de recuperar a memória, a história de mulheres que muitas vezes não foram tão reconhecidas, no caso da Illma, reconhecida por nós, mas honrosamente precisa ter seu nome mais marcado na cidade de Vitória e por isso nós nomeamos o nosso mandato.

Pretendemos na Assembleia Legislativa também dar um nome ao nosso mandato político. Nossa perspectiva é de transformar o mandato em recuperação de legado, de história, de afirmação de princípios e também de reconhecimento de tantas outras mulheres que vieram antes de nós.

Eu tenho muitas referências de políticas e de teóricas negras brasileiras. Poderia falar Lélia Gonzales, Sueli Carneiro. Marielle Franco, Talíria Petrone.

São muitas as mulheres fazendo história de forma brilhante no País, mesmo numa conjuntura tão adversa.

No primeiro ano de seu mandato na Câmara, a senhora denunciou a violência política de gênero, o que fez de Vitória a primeira cidade do Espírito Santo a instituir a data focada no combate à violência política de gênero. Explique em que consiste esse tipo de violência. Como ela afeta a sociedade como um todo e o que significou essa conquista?

A violência política de gênero compõe a trajetória das mulheres nos espaços políticos. Ela não é do agora. Ela compõe nossa realidade desde que as mulheres ocupam esses espaços.

Vale dizer que o tardio voto feminino no Brasil é uma demonstração da violência política.

É óbvio que no atual contexto, ela vai ganhando expressões mais dramáticas, com a chegada da extrema direita, da direita conservadora, que se manifesta de uma maneira muito violenta nos espaços políticos institucionais e também no parlamento.

Então, a violência política de gênero consiste exatamente na manutenção desse status quo de dominância patriarcal. Ela é uma das estratégias para manter a sub-representação das mulheres no espaço políticos.

Então não por acaso, no Brasil a gente tem uma participação de mulheres ínfima, se a gente considerar a representatividade de mulheres pelo ponto de vista populacional.

A violência política de gênero é uma das causas da nossa sub-representação. Ela afeta a sociedade de maneira muito brutal e não só às mulheres. Ela é uma ameaça à própria democracia.

A nossa conquista na cidade de Vitória, primeiro como vereadora e agora como deputada, é uma conquista também daqueles e daquelas que se negam a aceitar a violência, que não aceitam que nenhuma mulher seja mandada calar a boca, no âmbito do parlamento e das suas atribuições.

Quais outros tipos de violência contra a mulher ainda são negligenciados? O que mais precisa avançar rumo à igualdade de gêneros? O que se pode realmente comemorar, nesse mês da mulher?

Todas as violências contra a mulher são negligenciadas. Até o feminicídio, que é a dimensão mais explícita, que é a dimensão mais brutal é, muitas vezes, relativizado com a justificativa de que a mulher provocou, de que a mulher merecia.

Então a gente ainda tem um desafio no País, que é humanizar mais as mulheres, os seus corpos, as nossas vidas. A vida da mulher ainda é muito desumanizada. A prova disso é que a gente lida com uma naturalidade assustadora com os índices de violência, de feminicídio, de violência política de gênero.

Temos muita coisa para avançar. Primeiro, no ponto de vista das condições concretas de vida das mulheres. Depois, a gente precisa avançar em termos de alterar o fato de que mulheres continuam recebendo menos que os homens nas mesmas funções, têm mais dificuldades de concluir os estudos, são as principais vitimas da violência, vivem em extrema insegurança do ponto de vista alimentar, tem seus direitos negados do ponto de vista das políticas sociais. Temos muito no que avançar ainda.

Temos de avançar no sentido de romper a concepção de sociedade que entende que o papel da mulher é as tarefas de produção social, o cuidado. Que se nega às mulheres seguir aquilo que elas desejam de suas vidas e isso mantém as mulheres aprisionadas dentro de casa, com as tarefas domésticas. Também acho que a gente precisa avançar no sentido de ter uma transformação radical do nosso sistema político e institucional.

Acho que esses são alguns dos rumos necessários para a gente avançar na igualdade de gênero.

Mas a gente tem sim, algumas coisas para comemorar. Entre as comemorações, eu posso ressaltar o fato, por exemplo, de ter sido aprovado no ano passado, uma Lei que estabelece a violência política de gênero no País.

Essa Lei, até então, não existia. Isso eu acho que é uma vitória e acho que outras vitórias virão, a partir da nossa luta e da nossa organização coletiva. Infelizmente os motivos não são muitos, mas a gente precisa se apegar às nossas batalhas e vitórias até aqui. E a gente tem sim hoje, mulheres no parlamento, graças a muita luta política.

Quais ideias estão norteando o seu mandato e o que seus eleitores podem esperar do seu trabalho e futuro político? 

As expectativas em torno do nosso mandato são muitas. Estamos com muitas demandas, nesse primeiro mês de trabalho. Completamos o primeiro mês agora.  Então, eu acho que as pessoas podem esperar um mandato muito aguerrido, muito comprometido.

A gente ainda está entendendo o espaço do legislativo estadual, as nossas atribuições, como trabalhar no contexto de uma Assembleia estadual, mas penso que a gente muita coisa boa pela frente.

Então podem esperar muito trabalho e muito compromisso por essa cadeira dada pela população capixaba, no parlamento estadual. Quero também fala do Brasil, pois esse momento é um momento diferente. Momento de retomar as esperanças.

Que bom que nosso mandato no Estado está vinculado a esse contexto brasileiro, de retomada da esperança nas instituições, nas políticas públicas e na transparência.

 

Carlos Mobutto | Jornalista da AZ