Entrevista Dra Hermínia Azoury: “Eu sou por demais idealista. Uma pessoa idealista acredita na essência do que faz. Assim vou continuar minha jornada”

Entrevista Dra Hermínia Azoury: “Eu sou por demais idealista. Uma pessoa idealista acredita na essência do que faz. Assim vou continuar minha jornada”

O Portal Política Capixaba vai homenagear, ao longo do mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, algumas personalidades públicas que se destacam em seus campos de atuação, no Espírito Santo.

Seja na Justiça, nos órgãos públicos, no Legislativo ou no campo social, o Estado conta com o desempenho marcante de mulheres que fazem muita diferença na Sociedade.

A primeira dessa série de entrevistadas especiais é a Juíza Titular e Coordenadora de Enfretamento da Violência Doméstica, Hermínia Azoury, que atua há mais de quatro décadas pelo Poder Judiciário, sendo uma referência internacional no combate à violência contra a mulher.

Do voto à liberdade de expressão, passando pelo direito de escolher o seu parceiro, as mulheres têm por Lei, direitos iguais aos dos homens, mas a juíza esclarece que ainda existe um desafio enorme na consolidação dos direitos sociais da mulher: A cultura do machismo.

Hermínia Azoury é uma pioneira na luta e defesa do almejado direito de igualdade, seja de gênero, de classe, de etnia ou de religião.

Ela prestigiou os leitores do grupo Política Capixaba com um pouco da sua história, valores, conquistas e ideais.

Confira a primeira entrevista da série especial do Mês da Mulher:

O que te motivou no início da carreira a atuar nessa frente de combate à violência e o que te motiva atualmente?

Em 1998 fui designada para trabalhar no município de Serra, como Juíza Titular do Juizado Especial Criminal, por indicação do Tribunal de Justiça. Comecei a perceber que havia muitas crianças nas ruas, pedindo dinheiro, abordando às pessoas.

Aquilo me incomodou muito. Sempre fui voltada para o social, por isso pensei: Se elas estavam na rua, era porque estavam fora da escola. Achei que a violência a que elas deviam estar expostas não seria pouca e presumi que a evasão escolar estava muito alta.

Liguei para o prefeito na época, me identifiquei e pedi para que a secretaria de Educação fosse ao meu gabinete. Mostrei para ela o que eu sentia na minha alma e perguntei o que estava se passando, quais eram os indicadores da evasão escolar.

Fiquei espantada com o número. Num universo de 32 mil alunos do município, 17% das crianças estavam fora da escola.

Eu disse: Meu Deus! Isso é crime de abandono intelectual e está previsto no Código Penal desde 1940, no artigo 246, deixar de prover educação para filho em idade escolar, com pena de detenção de 20 a 30 dias.

A secretaria de Educação me perguntou por que não se fazia valer Lei. E eu disse que, como Diretora do Fórum, ia sim, fazer valer.

E como a senhora fez para cumprir sua promessa de fazer valer a Lei?

Pedi a relação de nomes dos diretores de escola, para que me passassem a relação dos alunos faltosos até 25%, que estavam já encaminhados para a reprovação, em razão evasão.

Depois disso encaminhei uma carta de intimação para esses pais, descrevendo o artigo. Pedi a colaboração da colega da Vara da Infância e da Juventude, para que os comissários ajudassem a entregar as intimações.

E foi assim, que num salão do júri, todos os pais intimados compareceram. Foi impressionante. Imagina, um universo de 17%, de 32 mil alunos. Tive que fazer várias reuniões, porque não dava conta.

Ao longo das reuniões, eu comecei a ver que eles poderiam arranjar de argumento de não ter o alimento da manhã, que não tinham recursos para manterem o aluno na escola.

E aí percebi que algumas aplicações de penas alternativas poderiam servir para conseguir cestas básicas, para aqueles pais que estavam desempregados e que davam a justificativa da falta de alimento para que a criança ficasse fora da escola. Penas por excesso de cargas, que passavam pela Rodovia Federal, com multas altas, por exemplo, eu transformava em cestas básicas.

À medida que havia as reuniões, eu perguntava quem estava desempregado e com a ajuda dos estagiários, tomava nota e começamos a enviar as cestas.

O que aconteceu a partir daí?

Aí, o mais interessante é que desse total de pais com filhos fora da escola, só uma mãe foi processada.

No momento da audiência, ela pediu aquela almofadinha de colocar o dedo polegar, para fazer a identificação pela digital, já que não sabia nem ler nem escrever. A Promotora tinha feito uma proposta de Transação Penal, para que ela cumprisse pena ajudando na limpeza da escola do filho.

Quando eu ia concluir a audiência e ela pediu aquela almofadinha, eu disse não! Eu vou mudar a proposta: A senhora tem cinco meses para ser alfabetizada. Eu arranjo um professor de graça na Prefeitura e a senhora vem assinar de próprio punho. Aí sim, a senhora não vai ter a condenação. Ela aceitou.

Deixei essa mulher intimada para retornar em cinco meses. O menino não tinha pai, só tinha ela. Ela voltou na data prevista e não só assinou, como escreveu um bilhete pra mim, “Eu agradeço, porque agora já consigo pegar um ônibus sozinha para ir ao médico. Já sei ler”.

Foi a melhor sentença que eu dei. A mais simples. A mais educativa.

Esse trabalho foi reconhecido, ganhou repercussão?

Esse trabalho que fiz com as crianças em 2001 resultou numa Lei. Na época, o Jornal Nacional noticiou e em 2002, uma deputada do Rio de Janeiro me procurou, pedindo para fazermos juntas um Projeto de Lei.

Mas esse Projeto alterava apenas às diretrizes bases da educação, acrescentando um parágrafo na Lei, para que todas as escolas tivessem esse controle da evasão escolar, comunicando ao juiz,  promotor e ao Conselho Tutelar, quando a criança tivesse mais de 25% de faltas.

Fiz a sustentação oral junto aos Deputados. Foi uma Lei aprovada muito rapidamente. Foi algo que me gratificou muito. Essas pequenas conquistas, porém importantes, me motivaram.

Os anos se passaram, veio a Lei Maria da Penha, em 2006. Eu, como Diretora do Fórum, instalei a primeira Vara de Violência Doméstica do Estado, na Serra. E ali começamos a batalhar para que esses crimes não fossem mais de competência do Juizado Especial Criminal, já que tínhamos uma Vara específica, que hoje é a 6ª Vara Criminal da Serra.

Com a ajuda da sociedade e da prefeitura, nos instalamos em um local onde poderíamos fazer também as ocorrências, pois não havia Delegacia Especializada. Foi a segunda Vara Especializada em Violência Doméstica do Brasil.

No universo de 22 mil pessoas presas no Estado, apenas 0,2% respondem pelos crimes previstos na Lei Maria da Penha. O que isso significa, tendo em vista que diariamente são noticiados casos de violência contra a mulher?

Aqui no Estado nós temos cinco varas especializadas na capital e apenas uma no interior. Só nos casos de feminicídio, as penas são altas.

As penas previstas na Lei 11.340/2006 são de no máximo três anos, sendo possível decretar prisão do acusado a qualquer momento, se for comprovado o descumprimento da medida de protetiva, concedida a vítima.

Mesmo assim, considerando tudo isso, o que sinto é a falta de notificação de algumas vítimas, por várias razões, derivadas da dependência afetiva e econômica e algumas vezes para não se exporem, principalmente quando se trata de classes média e alta.

Muitas vezes essas mulheres não vão até a Delegacia Especializada de Atendimento a Mulher (Deam), elas procuram o Tribunal de Justiça e o Ministério Público toma as providências da investigação.

As notificações não correspondem à incidência dos casos, por isso deve haver mais meios de incentivar às mulheres a denunciarem.

Durante todos esses anos de atuação, a senhora acredita que as mulheres dispõem do suporte necessário para não aceitarem serem vítimas de violência?

Eu acho que temos muito no que avançar, porque o machismo é algo histórico. A violência contra a mulher é um fenômeno universal. Desde o Brasil Colônia, e sabemos que os avanços de igualdade acontecem muito paulatinamente e nossas conquistas foram muito lentas. A mulher só conseguiu direito ao voto 1932.

Antes da mudança do Código Civil, a mulher era comparada a um menor de idade. Dependia em tudo da autorização marido. Até para fazer uma queixa crime tinha que ter a autorização do marido. Havia todas essas limitações, até chegar a constituinte, de onde veio essa tentativa de conquistas da igualdade de gênero.

A maioria as mulheres está mobilizada para não permitir a violência. A senhora acredita que essa luta também se tornou uma preocupação dos homens, dos estudantes, dos políticos e da imprensa, por exemplo?

De todos esses segmentos, destaco que a imprensa tem realizado um papel muito importante, que é o de levar conhecimento para as vítimas, para as mulheres de modo geral.  Porque a informação vem pelo ouvir, pela leitura. A divulgação dos casos, a cobrança por politicas públicas.

É obvio que a legislação vai se aperfeiçoando e nós, os órgãos do judiciário, o Ministério Público, e os demais levam para os parlamentares as sugestões de Projetos de Lei, para que eles possam melhorar a vida das pessoas, dando um acréscimo na Lei 11.340/2006, como deu no artigo 24ª, que é exatamente o que prevê punição para o descumprimento da medida protetiva, além do acréscimo da tipificação do Feminicídio.

As mudanças vão surgindo e surgirão outras. Agora vamos implementar mais propostas de alteração. Sempre para melhor. Hoje, a violência doméstica é tema até nas provas do Enem. É bom que os jovens vejam que existe a violência e que se ela existe, existe a forma de acabar com ela.

Ao longo da sua carreira, a senhora observou inúmeros casos de violência familiar. O que existe em comum entre eles? Além da punição prevista na Lei, o que mais pode ser feito, no seu ponto de vista, para erradicar os efeitos do machismo na nossa sociedade?

O machismo é o ponto que observo em comum entre os agressores. Aquilo de “eu sou o mais forte. Sou eu quem dá as cartas”. Deixar sempre a mulher em segundo plano é algo que vem desde o Brasil Colônia.

Mas há uma particularidade: Existem os psicopatas. Ficou muito bem claro, nos estudos que eu realizo que não é uma doença. É uma questão de caráter. O psicopata não tem emoções. Ele sabe o que está fazendo.  É um estudo muito longo, prefiro sintetizar nesse aspecto, de que uma parcela dos agressores é composta de psicopatas.

Sempre costumo dizer que o álcool em as drogas não são a causa da violência doméstica. São potencializadores. As drogas lícitas e ilícitas potencializam a violência. Pois ela já é inerente ao agressor. Já faz parte da personalidade do agressor. Do caráter da violência propriamente dita.

Para erradicar os efeitos do machismo na nossa sociedade, são necessárias políticas públicas. Não existe outro remédio.

Eu até crie o chamado botão do pânico. Na época foi um sucesso. Fizemos parceria com uma economista, que criou um projeto muito eficaz, que teve notoriedade, ao mesmo tempo em que as mulheres começaram a perceber que realidades podem mudar, quando se tem uma profissão, quando elas se empoderam e se tornam independentes.

Como juíza, a senhora encara com muitas informações “pesadas” que constam nesses processos. Como lida com esse impacto na sua própria vida emocional?

Não tem como lidar com a violência sem se sensibilizar. Eu tenho uma peculiaridade, que Deus me outorgou, que foi conhecê-lo bem na intimidade. Isso me trouxe um equilíbrio emocional tal, que só pode ter sido ser uma dádiva Dele, porque eu lido de uma forma a não prejudicar o meu emocional, justamente para poder ser veículo de bênçãos para aquela vítima que precisa de mim.

Não trago para meu lar as mazelas que acompanho tanto no Fórum, quanto na Coordenadoria. Às vezes, as pessoas me ligam até de madrugada. Eu não tenho horário para deixar de atender a uma vítima que está em perigo.

Então, tenho a satisfação de ajudar e transmitir às vítimas aquilo que elas precisam, para sentirem segurança, para que se sintam atendidas e tenham a certeza de que não estão sozinhas e certeza de que a justiça, a prestação juridicional vai acontecer. Isso foi um dom de Deus! A ele eu tributo com muita gratidão.

Na sua atribuição, a senhora tem feito muito pela severidade da aplicação e evolução da Lei. Certamente, já recebeu propostas para atuar em outros cargos. A senhora tem aspirações de se candidatar para algum cargo do Legislativo ou Executivo?

Já recebi sim, mas não tenho ambições de cargos eletivos, porque a minha aspiração, com minha aposentadoria, é dar palestras gratuitas. É levar conhecimentos a tantos quanto necessitam.

Ao longo dos meus 16 anos como Defensora Pública e 30 como magistrada, até agora, a minha pretensão é continuar combatendo a violência doméstica, mas no âmbito de voluntária. Pois eu sou por demais idealista. Uma pessoa idealista acredita na essência do que faz. Assim vou continuar minha jornada.

 

 

Carlos Mobutto | Jornalista da AZ